quinta-feira, 6 de abril de 2023

Marcel Vieira

 Marcel Vieira nasceu em João Pessoa, é escritor, pesquisador e professor da UFPB onde leciona Roteiro e Dramaturgia. Publicou o romance Camaradas, escreveu roteiros para filmes e séries de TV. Seu primeiro livro de poemas é Um abismo quase.






oferenda

poder ouvir a estridência efêmera do sonho
e tocar, ainda morno, o seu perfume branco,
abre-me, enfim, a fenda intrauterina
em que deposito, apaziguado,
a oferenda pela graça alcançada.

a isso chamam fé,
mas eu chamo terra.




*****




mudanças


o que sobrou do casulo,
seco e murcho sobre a pedra,
o sol logo dilacera,
picota em fibras miúdas,
até que, estiolada, a pele
inútil então vira
guarda-chuva de formiga.




*****



viagem

esta minha viagem
contigo. não há volta.
a selva escura e vasta
esconde o ouro em pequenas
fissuras. o céu tinge
a estrada de cardiovasculares
intenções.
a vida é sempre adiante.

enquanto as pernas exigem
a tração perene, penso
(típico gesto de quem
desobedece ao instinto):
e se, ao fim de tudo, a fé
for não um fogo que se avizinha,
mas a fagulha oclusa no palito?
meu corpo acomoda ações
que nunca serão obradas.
da ausência é que me completo.

por que, então, pedir-te a inteira
parte do que é inevitável
lacuna? por que exigir
da parelha a plenitude,
como se, na extravagância,
as solidões se agregassem?

não sinto falta do membro
amputado em guerra,
nem quero o encaixe servil
de um hemisfério na emenda
de outra semicircular
carência.
sou repleto de escassezes.




*****

 


desesperança

do pó lapidado
dos meus ossos, surge
a urgente fuligem
que cimenta o incêndio
da desesperança.

nesta terra infértil,
onde o que semeia,
sucumbe, até o tempo
se reitera inepto.
quem, sozinho no escuro,
pode ver no espelho
a invertida imagem
de si mesmo outrado?

quem, honestamente,
ata-se à verdade
feito um barco bêbado
que ancora na noite
o soluço irônico?
pouco – ou nada – resta
da crença no Todo;
até mesmo os cegos,
pensos na mureta,
hesitam em fiar-se
na haste das palavras.




*****

 


paciência

com um cansado aceno, que de miúda
envergadura o gesto quase ultima
o seu desejo assim que a mão espalma,
meu corpo gasto sem esforço se
despede de qualquer sincero afeto
e cada toque, mesmo ingênuo, agora
gera asco em minha pele apavorada.
com medo, as horas que antecedem o ovo
não mais escrevem versos do martírio.

a fúria afoita, desproporcionada,
que nesse tempo prenhe de assassínios
é a única ação fragrante de justiça,
ataca em mim a calmaria arcaica,
o sossego, a leveza mineral
(feita de fêmea firme em macho inane),
e obriga as mãos, incultas de combates,
a ser serpente torpe que envenena
a vida e a obriga, em greve, ao ricochete.

há quem resista e disso faça cartas,
amole sonhos, introduza azedo
adubo no futuro do presente.
a mim me espanta todo esse estoicismo,
feito de pão e estopa, cartorial,
prescrito, como antessala do abismo.
admiro apenas os que, putos, soltam
granadas no adro hostil dos ministérios.
é com rinhas de galo se implode impérios.

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