segunda-feira, 20 de março de 2023

Wilma César

 Wilma César é natural de Patos, sertão da Paraíba, residente em João Pessoa. É psicóloga, professora e poeta. Tem poemas selecionados para publicação em várias antologias, e textos nas coletâneas do Prêmio Off Flip de Literatura (2022/2023). Casada, mãe de três e militante feminista nos Coletivos Apoena, Papel Mulher, Escreviventes e do Mulherio das Letras Zila Mamede (RN) e de João Pessoa (PB). Sonha, sem pressa de realizar, publicar seu livro solo.







 

 

Milagre

 

O vazio
O frio
O oco
Um buraco
Lânguido pescoço
Vento do arrepio
Glândulas expostas
Gânglios infartados
Dentes trincados aos montes
Sanguessugas de mil olhos
Olhos opacos, vidrados
Bocas abertas, sedentas, obscenas,
Fome que não aplaca
Nenhum belo horizonte
Estômago que não enfarta
Corpos zumbis pedintes
Estética excludente



*****

 

1.      Negação

 

A face endurecida
A coluna alquebrada
Cicatriz do tempo de um sorriso amarelo
O esgar do tormento
Vida parada no suspiro, fixada no intervalo
Voltas e voltas de lamentos
Voos interrompidos
Asas de vassalo
Sonhos suspensos
Relógio corrompido
Odor que exalo
Flagelo!


*****

 

2.      Terceira Intenção


As horas voam
O silêncio persiste
As mãos inquietas
O coração aos saltos
Resiste
O amor que lateja
Explode em faíscas
Purulenta ferida
Brilhantes abcessos
Sangue extravasado
Alívio secreto
Corpo vitalizado
Esfuziante tensão
Nasce o poema
Dorme a poeta
Contínua cicatrização


*****

 

3.      Renascimento

 

Entre a taça e o copo
A indecisão persiste
Você insiste

na desordem se torna ordem
Diariamente você impele:
- Escolha,
entre a taça e o copo

Eu respondo:
- quebro a taça
- lavo o copo
Bebo a vida
Eis a saída!



*****

 

 

4.      Enredo

 

pano de prato branco, bordado, bico e fita
no ato desbotado
rasga, água sanitária
louça molhada/comida fria
o pano desfia
o amor naufraga em banho-maria
a televisão de plasma desligada
torce e retorce, o braço não alcança
controle remoto perdido
sala escura, cara fechada
a novela que acaba sem ter sido acompanhada
o aparelho celular vibra
o silêncio glacial quebrado
não toca, estremece e vibra
aparelhos desligados/desconexão real
fones de ouvido
não trazem queixas
não proporcionam deixas
possibilitam suspeitas
a caneta ressecou a tinta
papeis empilhados
assinaturas adiadas
meses que anseiam/anos que lamentam
suspiram
finalmente registram, assinam
poderão vibrar, iluminar,
remendar, guiar
enfim, s e p a r a d o s
poderão amar
amar-se, amarem-se


Poema selecionado para compor a coletânea Prêmio off-flip 2022

 
*****


5.      Todo sábado

 

a tesoura cega
coberta por pontos de ferrugem
guardada como relíquia da infância feliz
veio da caixa de couro
esmaltes invariavelmente vermelhos
a tia usava
pintava as unhas
todo sábado
todo sábado na faxina
faxina ao som de long plays 
Chico Buarque, Clara Nunes, Luiz Gonzaga
a radiola tocava
o copo cheio de cerveja gelada
esfriava
encorajava tarefa cansativa
acompanhava tudo
olhos atentos
ansiava pelo cheiro
o chão gelado encerado
leitura ensaiada
arriscava mexer nas estantes
deleite no olhar
volumes tão bem catalogados
todo sábado era assim
e todo sábado era a primeira vez
a caixa de couro cobiçada
os esmaltes
o cheiro de pinho sol
os livros permitidos
os proibidos
o mar que ela não conhecia “serenava”
seu chão
todo sábado era feliz
somente
invariavelmente, feliz!

 

 

6.      Mãe

 

mãe, vem
minha testa quente
espera tua mão
fria e curadora
mãe, vem
meu ventre proeminente
espera tua mão
quente e protetora
mãe, vem
meu coração
aos saltos
espera tua mão
clama e acolhedora
mãe, vem
minha cabeça oca
espera tua palavra
sedutora
mãe, vem
fica perto
sempre presente, sempre!

 

2 comentários:

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Adriano Cabral

 Adriano Cabral de Sousa nasceu em Santo André-SP e reside em João Pessoa-Pb. Cursou Letras na UFPB e integra o Coletivo de Teatro Alfenim d...