Fontes: Antônio Miranda e Ambiente de Leitura Carlos Romero
ÍCARO
Não contavas com o céu de fogo
E vulcões invisíveis
Querias inventar.
Nem tinhas medo de tua força
Minimizada pelo grande deus
O ar.
Que te parecia na imensidão
Colchão macio de nuvens
Querias só voar.
E foi tanto o querer que te lançaste
Do alto dos teus sonos
E te dilaceraste.
(...)
Profundamente lírica, não sei
A paixão do mergulho
A febre da canção sombria
Talvez por ter pouca densidade
Natureza de chuva, sem magia
Remanso de tristeza lago de saudade.
Profundamente vaga pobre a definir
A duração exata da inconstância
O salto e volta o nó a esclarecer
Talvez por ver tão seca a realidade
Natureza de nuvem inócua substância
Desfazer-se do eterno vir-a-ser.
Profundamente tudo no desejo
No casulo do sonho entrincheirada
No raso fundo da razão tardia
Talvez por ser moldada em maresia
Natureza de alga mole, morna
Letárgica aos raios da manhã
Profundamente nada.
ENIGMA
Enquanto penso, teço enredos, crio imagens
Debruço-me sobre algo que não sei
Para engendrar-lhe um rosto.
Nenhuma ideia! Falsa fluidez, teia oblíqua.
Loucura, ânsia de flagrar no outro
O que tanto busco em mim.
No limite do medo e da coragem, exponho-me.
Abro gavetas travadas, reviro a alma
Desfiro golpes na percepção
Lanterna em punho, pelos becos interiores
Que velam e desvelam minha sombra
O outro. Num garimpo inútil.
Sem jamais encontrar o que faz dele enigma
Que se oferta e que escapa, se concentra
E se dissolve nele mesmo e em mim.
FORA DE
ÓRBITA
Em que duras
aflições me prende
Aquele que não mais vejo
Habitante da ilha dos mistérios
Que me
adornava e me adorava como deusa
Derramando em meus ouvidos poemas indecifráveis
Prendendo-me com encantamentos
Aquele cuja
ausência me entorpece de saudades
Até do que não vivi
Entranhando em mim para além da carne
Pintura,
sulco, marca de fogo
Nesse crisol resisto impertinente
Por uma causa para sempre perdida
Por um nome
que não posso mais chamar
Em minhas noites brancas
Em que afetos e afagos vagam sem destino
Astros-veleiros
tangidos no cosmos
Fora de órbita
Inevitavelmente a anos-luz da minha galáxia
DELÍRIO
Ficou no olhar
Siderado o flagrante
Do alvo impossível
A um passo da mão.
Bailou na festa
Que a alma inventou
Num ínfimo instante
E a vida não.
Marcou lá dentro
E escapou dançante
O sonho suspenso
Abismo e canção.