quinta-feira, 27 de abril de 2023

Vamberto Spinelli Jr

Vamberto Spinelli Jr nasceu em João Pessoa. É poeta, doutor em Sociologia, Professor da Rede Pública Estadual  e do Curso de Medicina do Centro Universitário de Patos (UNIFIP). Ganhou o prêmio Novos Autores Paraibanos promovido pela UFPB. Seus poemas estão em diversas revistas literárias como Casulo e Correio das Artes. Publicou dois livros de poemas, "Sem lugar" e "Piquete soledade".


PIQUETE CAMUSIANO

poema seja
soco surdo
tributo ao mundo

: ser em si
ponte-abismo
e único

poema seiva
quiçá
insolente fruto

sentir-pensar:
só revolta ante
o absurdo.




*****




MOTIM


escrever poemas
é uma forma de resistir
sem fazer
concessões

motim
dentro
do silêncio.




*****




ACIDENTAL

micropetardos capturados
na hora mais grave

da antiflora gutural
brota o poema,
(in)decifrável
amora-silvestre.




*****





LA PAZ

saudade não é literatura
palavra que não cabe palavra

um continente desolado
que se guarda sem querer

é perder-se
em meio à multidão implacável
que resiste indiferente

como se oxigênio fosse
silício e silêncio

a quase quatro mil metros
acima do mar




*****




INDISSOLÚVEL

o sertão me percorre
somos secos áridos sonhos
tão paridos um pro outro
tamanho dobrado sobre o tamanho.

mas nada comove nem abranda
a entranhada costa solar
o hospital que mais sana
o desejo exasperado de mar.


quarta-feira, 26 de abril de 2023

Apolônio Cardoso

Apolônio Cardoso (1938-2014) nasceu em Campina Grande e é considerado por muita gente uma das maiores expressões poéticas do Nordeste. Advogado, poeta e repentista, é autor de vários poemas e canções populares, como Flor do Mocambo e Flor do Cascalho. Essa última, inclusive, foi música tema do filme Romance (2008), do premiado cineasta Guel Arraes e teve direção musical de Caetano Veloso Por quase sempre tratar de flores em seus poemas, Apolônio Cardoso é conhecido como o “poeta das flores”.


Flor do Mocambo


Dedico a você que está me ouvindo
E talvez sentindo saudades também
Ô Flor do Mocambo vestida de luto
Herança do fruto dos beijos de alguém

Foi de madrugada, quando eu lhe beijei
Parti e chorei, vendo a imagem sua
Sou triste e boêmio sem felicidade
Cantando saudade, aos raios da lua

Você flor divina, tão simples e tão bela
Ô flor amarela, do meu pé de jambo
Sou triste poeta, cativo mais amo
Por isso lhe chamo de Flor do Mocambo

Não tenho riqueza para lhe ofertar
Navio nem mar, nem Copacabana
Só tenho a viola a vida e mulambo
Ô Flor do Mocambo, da minha choupana

Lhe dou as estrelas, a lua a cascata
O campo e a mata, o riso e o pranto
Estrela cadente luz de vagalume
Venha dá perfume, aos versos que conto

Lhe dou peixinho, que morre na areia
A voz da sereia, que canta escondida
Eu só quero apenas que os dias seus
Se unam aos meus, nos dramas da vida

Odeio o guerreiro, da vil raça humana
O homem que engana ao sei Criador
Pois morro brigando no céu e na terra
E até faço guerra, pra ter seu amor

Olhando a inocência, que tem no seu riso
Eu fico indeciso, sem saber o que faça
Você é poema da felicidade
Plantando saudade, na alma da raça

Quando a mocidade, voar for embora
Olhando a aurora, sem saber porque
Aí chorarei já quase no fim
Com pena de mim, pensando em você

Termino o poema, olhando pra lua
Linda deusa nua, que sente ciúme
Ô flor do mocambo dos meus desenganos
No passar dos anos não perca o perfume

Pedro Osmar

Pedro Osmar Gomes Coutinho nasceu em João Pessoa-Pb. Poeta, músico, artista plástico e publicitário. Nos anos 1960 e 1970, ingressou no movimento da poesia marginal, participando da chamada “Geração Mimeógrafo”. Por essa, época, suas atividades poéticas escolares logo se expandiram para recitais em ruas e associações. Possui textos seus montados para teatro, entre eles, “Quem é Palhaço, Aquí?”, por Edilson Dias; “Fogo Prestes” por Horieby Ribeiro, Edmilson Cantalice e Jacinto Moreno. Teve músicas suas gravadas por Elba Ramalho, Lenine, Zé Ramalho, Shangai, Zeca Baleiro, Totonho, Escurinho, Milton Dornellas, Gláucia Lima, Amelinha e outros. Publicou o livro "World Trade Center" juntamente com o poeta Ronaldo Monte e diversos folhetos. possui um vasto catálogo na área musical.




Conheça as Vantagens

Um bom disfarce para o medo
é a gula
é a dura trajetória
do espírito carne adentro
é a camada de ozônio
se rompendo em raios
nuvem de chumbo sobre frutas




*****



Alguém

É um boi que passa
clínico
metafísico
por dentro do ônibus

Pasta uma baba lepra
lambe um
silêncio triste
e um Chuncho
e um baque

Quantos quilos?
Rabo ou pata?
Tratar com Biu de Malaquias
preço a combinar.




*****




Torres/touros
Como palavras na gaveta
Ruindo linguaragens-dia
Em véus (cavalares).




*****


Da torre moura
Uma gitana canta.
Vinga-se Guernica.
Descansa em paz
A alma do touro andaluz.




*****



Pedras de palavras
Comendo-se carne
E sinos batendo-se
Ao pó.






Ícaro Medeiros de França

Ícaro Medeiros de França nasceu em João Pessoa-Pb e vive em Manaus-AM. É formado em Publicidade  e Propaganda. Publica seus poemas em periódicos como O Correio das Artes e nas redes sociais.



Carboidrato

Comprei a massa mais burra
Porque era a mais barata
Mais fácil de ser cozida
Mais fácil de ser servida
Engolida, digerid e excretada
Só comprei porque era fácil
Odeio gosto de massa




*****




"Chão"

Sou normal
Me encaixo no padrão
Cabelo sempre igual
Sonho com os pés no chão
Não tive trauma de infância
Obedeço os meus pais
Respeito as leis de trânsito
Não ando na contramão
To estudando para concurso
Sonho com os pés no chão
Nunca fui no exterior
O salário não é tanto
Quando dá vou à praia
Aproveito em família
Tenho a vida sossegada
Tomo café com pão
As contas formam uma pilha
Sonho com os pés no chão
Durmo depois da novela
10h já to na cama
Gosto de gente de bem
Que aceita e não reclama
Amanhã acordo cedo
2,20 a condução
Espero o fim de semana
Sonho com os pés no chão
Nunca fiz tatuagem
Não gosto de aparecer
Outros falam por mim
Escuto na multidão
E a vida é assim
Sonhar com os pés no chão
E do chão nunca saí
Sempre fui normal
E hoje me arrependi




*****




POR ONDE

pessoa, por onde andas?
pombo, por onde voas?
grilo, por onde cantas?
amor, por onde pulsas?
mágoa, por onde sofres?
sonhos, por onde vives?
morte, por onde lutos?
tempo, por onde perdes?
luta, por onde pazes?
riso, por onde abres?
futuro, por onde zelas?
eu, às vezes sei *****
Nunca se sabe
mas talvez uma coisa boa nos espere lá na frente
ansiosa por um abraço
um sorriso
e o desejo de percorrer mais alguns quilômetros
falando sobre o que sente
e o que deixou de sentir
Talvez até nada te espere
pois demorasse
fosse besta e a coisa
seja lá o que fosse, fosse impaciente
talvez cansou e partiu
achando q tu nem vinha
pois é
é um mistério, né?
Nunca se sabe
mas se nunca fizer
nunca vai fazer
***** Cachoeira Forte feito água Sensível como as pedras



Marcus Vinícius

Marcus Vinícius de Andrade nasceu em Recife e fez seus primeiros estudos de música com os maestros Arlindo Teixeira, Pedro Santos e com o pianista Gerardo Parente. Compositor, maestro, arranjador e Presidente da Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes (AMAR-SOMBRÁS), sociedade de gestão coletiva de direitos autorais musicais que integra o ECAD. Foi membro do extinto Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), que pertencia ao Ministério da Cultura. É um profundo conhecedor da matéria autoral, sendo um dos nomes mais respeitados de nosso país. Nesta entrevista, analisa questões que estão na ordem do dia. Paralelamente ao trabalho musical, integrou o Grupo Sanhauá lançando por esse grupo dois livros de poemas, "Poema Quase Canto e "Cinco Tempos do Olho".


FALAÇÃO (1)


o rádio de pilha disposto sobre a mesa
                    - concentra
mais que a comida do espírito
                    - condensa
mais a palavra que o grito
                    - enfrenta
mais o gemer que o gemido

                    - alenta
mais que um simples estar perdido
                    e se aleita
                    no seu próprio
                    u  m  b  i  g  o...

o rádio de pilha disposto sobre a mesa
se perde conforme os seus sentidos
                   (antenas
                          ou então
                                 ruídos)
captando e se embabelando: sons
sendo o que é
                   tendo sido
outrora nada mais além
           nada mais sem
           um sim sem mais também
        -  s i m p l e s   f e i x e   d e  g r i t o s.

o rádio de pilha disposto sobre a mesa
está muito além de mim:
                     eu mesmo que
                          meço/avalio
o fato simples dele estar vivo;
                     eu mesmo que
                     com uma pancada
posso descontrolá-lo de seus fios;
mas eleme pega
e em estar pegando-me
cala-me com seu coração frio.

o medo escorreu por entre os olhos
                  e chegou até os lábios do menino:
com um xarope amargo então, que ele
                  provasse (uma careta!) sem nenhum efeito.

                  e daí para mil noites sem sono
de fantasmais sonhos, abismo colorido
                  e seus bichos de memória deslizando
nas visões frescas de tevemaníaco

foi um pulo: um só apenas
                   o suor esquecido e descarnado
o seu olhos de infante, avessamente...

                  nele jazia um pássaro tombado:
o medo  -    que ali se alimentava
                  na sala escura com a tevê na frente...


Anco Márcio

Anco Márcio de Miranda Tavares (1944-2013), nasceu e viveu em João Pessoa. Jornalista, poeta e teatrólogo, publicou pelas Edições Sanhauá o livro “Canto Chão”. Recebeu diversos prêmios como diretor, ator e autor de peças infantis. Trabalhou em rádios e jornais de João Pessoa como locutor, produtor e redator. Contista, publicou em revistas de circulação nacional. Teve vários textos humorísticos publicados no “Pasquim”. Publicou também o livro “Levanta que o leão é bravo”.


PARA MARIA CRISTINA


abertura

quando a terra estiver livre
meu poema será ode...


*


nesta terra
que gerou cantos
há homens magros
que semeiam prantos


*


a rude mão
que a terra seca
fará do amor
seu canto de liberdade


*


este pranto
- é o homem
sua semente de liberdade
precisa ser lançada
para que seu pranto
se transforma
em sorriso


*


este ferro
que mil covas
cava
não fere a terra
que esperanças
encerra


*


nesta terra insone
onde lida o homem
os pés da liberdade
um dia pisarão
- e sulcarão covas
de onde brotam lírios


*


não passará muito tempo
para o chão
que o homem pisa
libertar-se do cambão
e os que pisam chão-escravo
terras livres
pisarão


*


o  homem não cansa
quando a terra mansa
por sua mão
se abre
se o chão é duro
seu cavar macio
provoca carícias
com a foice-lança.



*



cantemos o chão
que a mão do homem ceifa
que nunca se queixa
do ferro que fere
cantemos as chagas
desta terra virgem
que da ceifa seita
gera liberdade.



(...)



Fonte: antologia poética grupo sanhauá






terça-feira, 25 de abril de 2023

Eugênia Correia

 Eugênia Correia nasceu em Teresina-PI, residiu 15 anos em João Pessoa e atualmente mora em São Paulo. Professora universitária aposentada pela UFPB, é psicóloga e fez doutorado na UnB desenvolvendo um método terapêutico para crianças e adolescentes em situação de rua. Sua área de trabalho é a interface Arte/Psicanálise. Em Paris fez curso no museu do Louvre sobre a questão do espaço cênico em exposições e visitas guiadas. Multiartista, Eugênia Correia possui dois Eps disponíeis no Youtube (‘Eugênia trilhas de apartamento’ e ‘Eugênia Cirandas do silêncio’), com música e letra da sua autoria. Como escritora tem participado de coletâneas do Mulherio das Letras e está escrevendo um texto para teatro sobre o tema “alienação parental”.


Dia mundial da poesia

Frente à paisagem dispersa e muda
Faz-se um oráculo
- nuvens, ruínas, pássaros -
Tornam-se respostas profundas
Como um trovão
Faz-se um poema
- chuva, poeira, vôo -
Desmancham-se as perguntas
que pousam no chão. *****
Um frevo meu

Quando o pé tocar o chão
Tanto faz se é um frevo um rock ou é
cantiga de São João
Quando o chão tocar o pé
Ouça bem seu coração
Firme no acorde
Encare a lava que vem
Desse vulcão *****
O pombo - nosso novo animal totêmico - já anunciado por Freud em Totem e tabu, por Lacan no estádio do espelho, por Levy-Strauss nas relações de parentesco totêmico , capazes de conceder voleio a quem render homenagens a seu clã, anatomicamente geodésico, elegante e engraçado. O grande L flutuando em nossa memória, isso ninguém tira.
Mesmo breve o voleio
Ressoa em nosso chão
Inteiro

***** MUDANÇA A janela encontra outra parede A porta não se importa mais com o chão Os quartos asfixiados de ar soltam-se pela paisagem O dentro e o fora juntos, compactos, no caminhão *****
FIGURINO A gota se despe da pele E sua transparência reluz Tudo que vive se crê rei E por isso Nu

Lizziane Azevedo

Lizziane Negromonte Azevedo nasceu em Campina Grande-Pb. É contista de grande talento tendo publicado o livro A Vírgula e Outros Pontos, entre outros. É advogada e escritora. Atualmente tem apresentado sua produção de haicais e minicontos na sua conta do Instagram.





Fatiando as horas
o sino da igreja toca.
Sempre afiado.




*****




Cada caixa tem
um pedacinho da casa.
Dia de mudança.



*****




Ondinhas quebram
na barriga da mamãe.
E o bebê nada.




*****




O grilo não cansa
canta, canta, canta, canta.
Oculto num canto.




*****



Foi longe demais
a folhinha ressecada.
Rajadas de outono.

Vernaide Wanderley

Vernaide Wanderlei nasceu em Patos-Pb e vive e Recife. Exerceu as funções de pesquisadora social na Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ. Foi uma das responsáveis pela reabertura da União Brasileira de Escritores - PE. Publicou os livros de  poemas Tatuagem e Litorgia entre outros.



ABRIR CLAREIRAS EM DESERTOS

Lembro dos cachos anelando às tardes
dos risos antecipando verde nos outeiros
da menina lúdica acordando paqueviras.
Vejo-a escrevendo versos sem viço
negando visto nas canções de outrora
querendo abrir clareiras em manhãs desertas.
Se pudesse lhe daria minha dor vivida
(dor de amor que já partiu em julho)
para não perder a fé que desabrocha
espalhando óleos no seu rosto ensombrado.
O amor que finda nos definha em mágoa
para explodir petúnias na paixão que chega. *****
HARMONIA DOS SONS
O excesso de sons distorce
a noite lá fora...
As vidraças esquecem
de repassar ecos de luz
silêncio e música para ela
que enxuga o olho esquerdo
lugar de escorrer misturas
lágrima e rímel.
Lembrou rosto de criança
depois de chorar e soluçar
em descompasso, sem fala,
choro nos soluços cortados
pela dor, malcriação,
... carência disfarçada, nudez. *****
JULGAMENTO DE LAURA
No terminal do cais,
as pitangas e as carambolas
encantam-se em resinas,
lacas de sóis sobre sobrados, putas,
mendigos e o recinto solene das togas.
O vai e volta de meias e ligas nacaradas
confunde-se com o preto de cetim
e as leis unívocas de homens e de tomos.
Laura é ofertório e súplica,
puta-menina de rios e de punhais,
peitos que mais se adolescentam
a cada sentença e perfuram
sua própria alma e a da cidade
- um fardo indefensável de dias comuns.
O vai e volta das meias nacaradas
aquieta-se e chora sobre ligas,
sobre os códigos, os homens, as togas
e sobre o esquife do cafetão. *****
DE TERRA E DE AFAGO

Agredi o mundo
com punhais
sem ponta,
feri pulsos
queimei a alma
cuspi a raiva
e como um gato cego
enrosquei-me
nos pés da cama
querendo o afago
de gestos loucos. *****
SEMANAS DE COLHEITA

Uma alegria rolou
sobre os torçais do cinto,
alegoria das festas profanas
inundando meu colo de esperança.
Guardemos a chama
desta quarta feira e a dos grãos
que caírem agora no sazonado tempo,
selecionado tempo,
para que todos encham seus bornais.
Passo a ter excessivo zelo
ao tocar as peças da escrivaninha
seus papéis
e envelopes não abertos.
Porque é preciso cultivar um rosto
que enfrente novamente as ruas
saber que finda a estação de escolha
e que dúvidas seguirão com nós.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Geraldo Vandré

Geraldo Pedrosa de Araújo Alves (Geraldo Vandré) nasceu em João Pessoa-Pb e reside em Petrópolis-RJ. É cantor, compositor, advogado e poeta. Quando saiu do país por ocasião do AI5 recebia o mais alto cachê pago para um artista no Brasil. Deixou o país no auge da carreira e somente voltou a cantar por aqui 50 anos após, em recital realizado com a Orquestra Sinfônica da Paraíba na Sala de Concertos José Siqueira em João Pessoa. Lançou alguns álbuns que se tornaram históricos, a exemplo de "Das terras de Benvirá". Possui uma vasta obra ainda inédita e um "Poema Sinfônico" ainda em construção. O blog Gota Serena publica aqui o poema que deu origem a um dos seus maiores sucessos, a canção "Disparada". Também outros poemas do livro "Cantos Intermediários de Benvirá", lançado em 1973 durante seu exílio no Chile. Em 2018 o Governo do Estado da Paraíba através da SECULT-PB e da Editora A União, publicou a primeira e única edição brasileira que não disponível para venda. Todos os exemplares encontram-se com o autor. Para esta edição Vandré mudou o título do livro para "Poética".





DISPARADA

“E assim se passaram seis ou seis anos e meio,
direitinho, desse jeito,
sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma,
porque esta é uma estória
inventada e não um caso acontecido não
senhor.”

                            J. Guimarães Rosa



Prólogo
Há sempre muitas estórias
e muita fé pra comprar
os sonhos que elas sugerem,
pra salvar ou pra enganar;
mas essa, vou prevenindo:
Cantando, chorando ou rindo,
depende só de quem ouve;
foi inventada, não houve;
Não vai enganar ninguém,
pois não trata de mal
e nem de bem;
é de deixar correr livre,
sem peias e sem cercados,
os sonhos que a gente vive,
em tempos tão mal parados.



O campo

Nos largos campos gerais

de Minas, do Mato Grosso,
de São Paulo, de Goiás,
Catarina e Paraná,
Rio Grande, grande ou mais,
existe uma paz contida,
que passa do campo ao gado
e do gado vem pra gente;
quase em paz a gente fica;
e estando a gente no campo,
em vez de desesperado,
mais ele pacifica.
Cercados na mesma terra,
o boi muge, o povo canta,
e na paz desses gerais,
nem uma mosca se espanta.
É belo, é belo, não nego.



A boiada

Há quietude nos campos e nos homens; Nos campos porque são largos; tão largos que em vão consomem todos os caminhos por abrir, todos os passos, laços e abraços, meios e anseios dos homens; nos homens porque são fracos; não por vontade, por marcos há muito no chão plantados, de interesses velados; velados mas fortes; fortes e bem fincados como a paz contada em versos, nas léguas dos mil impressos, feitos para consumo geral. Mas um dia, a quietude geral dos campos gerais, foi quebrada: que até hoje é procurado, e nunca foi encontrado e nem será, no verde mais amplo do campo, deu partida; feriu mais fundo a ferida de uma rês que era o cabeça, a segurança e o guia da mais tranquila boiada que naquele tempo havia. Toda paz foi alterada pela dor mal comportada da boiada desfileirada, estourada.



O caipira

Mas os campos gerais
são largos
e, por igual, consomem
o fraco anseio do homem
e, do gado, a disparada.
A quietude sempre volta
e voltou.
Encontrou uma figura quase humana
que de humana parecia
só chapéu, laço, as esporas
e o lugar na montaria,
do vaqueiro do outro dia.
A busca do gado solto,
a sela lembrando o morto,
a poeira ainda no corpo,
sua vida de trabalho,
chamada vida vadia,
no mesmo impresso
em que antes, calma
era poesia,
cercam, segam, como ao gado,
sitiado num quadrado de aveloz,
sua fé, sua alegria.
Caipira, feito peão,
olha de frente o sertão.
Olha o gado, olha o cercado,
sente a própria solidão.



Olha de perto o cavalo,
e quanto mais perto certa,
a nova e clara visão:
o cavalo é sempre o mesmo,
a sela também, e o gibão;
quem muda sempre é o vaqueiro,
por qualquer jeito e razão;
se estoura a boiada
foge, ou morre,
não tem perdão.
Jeca por impaludismo,
caipira por tradição,
tabaréu por anedota,
matuto por servidão,
dá-se contas, de repente,
que também pode ser gente;
toma o cavalo nos freios;
é seu, de forças e arreios;
porque nele está montado
e por ele é bem usado;


e mais:
não tem dono o sertão.
Grita alto e sem temores,
virei gente, meus senhores,
pra morrer morro por mim
e por minha condição.
Na mente tenho somente,
uma fé e uma razão:
Libertar todo este campo,
correndo todo sertão;
numa mão, laço e chicote,
na outra, os marcos do chão.
***** CONFISSÃO Toma este canto, companheiro; e em teus ombros, em teus braços, e em teu peito, no teu exato jeito, prossegue e dá sentido ao canto com teu feito. Eu mais não pude que cantar; e não basta companheiro, o canto e o só sonhar. Por isso, tanto, eu te confesso e me garanto: se não fossem os teus ombros e os teus braços e o teu peito e o poder que só tu tens de transformar, eu não havia de cantar. ***** OLHA DE FRENTE O SERTÃO Jesuíno de Maria lá da serra do Capão, morreu, ao romper do dia, de tocaia e traição; e o matador nem sabia, do que fazia, a razão; no feito foi só mandado, no fubá, mão de pilão. ***** REFLEXÃO Posso internar-me singularmente, nos mistérios de uma solidão que compete, exclusivamente, a cada um em separado. Porém, decididamente não quero e aí está, o motivo claro do poema inverso que vivo a escrever, e que me dáamparo pra poder dizer que o eu não existe sem você. ***** AOS QUE VÃO COMIGO E COM QUEM VOU FICAR Vou-me embora, agora, e se eu não voltar não deixem tristeza tomar meu lugar; que no mundo, afora, sempre vou lembrar, daqui, desta hora, quando eu cantar. E se os amigos que aqui vão ficar, quiserem, mesmo, e de mim precisar, guardem desde agora, o que eu posso dar. Preservem consigo o que eu vou levar; este amor, antigo, que eu pude encontrar; que vocês mantinham sem saber negar. E aos muitos amigos que aqui vão chegar procurando abrigo pra continuar, digam, sem temores, depois de ajudar, que um pouco adiante, em qualquer lugar, tem calor da gente e amor a esperar que eu levei bastante pra sempre plantar.




Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Adriano Cabral

 Adriano Cabral de Sousa nasceu em Santo André-SP e reside em João Pessoa-Pb. Cursou Letras na UFPB e integra o Coletivo de Teatro Alfenim d...