00 MIOGRAFIA, grafia do músculo involuntário
sou paraibana, campinense de fato,
coração e outros órgãos. escrevo desde que minha vó me ensinou a ler e fazer
isso de modo que pudesse criar uma carta ao pai que andava dirigindo pelo país
afora. todo dia das mães – desde que tinha uns dez, ou doze – e em seu
aniversário eu escrevia umas rimas para ela, “a mama” (uma prima me ensinou que
se fazia isso contando sílabas). e, não sei... gosto das palavras, embora seja
um amor unilateral (história da minha vida). queria ser compositora, mas; mesmo
assim, amigas e amigos gravaram umas – amigo é pra essas coisas, salve! em 1985
acabei num curso que cortou águas na minha existência: bacharelado em história.
queria ser arqueóloga, mas; mas nada –longa história. em 1995, como sempre amei
computadores e bibliotecas, fiz mestrado em informática pra tentar suster uma
obsessão: programar um software
gerenciador de bibliotecas, e o anjo safado me levou até o fim. na sequência,
fiz doutorado em sociologia, porque identidade fixa é coisa perigosa. já mais
pra agora, uns 2018, me apaixonei pela história da áfrica e inventei um ead em
história e cultura afro-brasileira, porque não consigo nunca me encaixar nos
editais e dessa forma imaginei diminuir o abismo entre as humanas e as exatas.
na pandemia resolvi fazer a licenciatura em história: tarde demais, não, nunca
é tarde, sussurrou alguém para bárbara: quem sabe ainda dou umas aulas no
estadual da prata? e hoje, num direct,
vem o poeta me chamar. ah! primeira coisa foi desconfiar que era hacker querendo meus sagrados dados. feiquinius!
não era. então tô aqui
05 CORES DO TÉDIO
Autêntico pranto
fruto inédito do tédio
insípido suco de vidro
claro e cortante colírio:
inútil remédio.
Idêntica gota
pérola gêmea do ódio
dor do iodo na carne
lágrima de grave saudade:
suave minério.
*****
06 OFICINA DO ADEUS
da caixa de ferramentas
retirei o martelo, o alicate,
a furadeira, alguns pregos
chaves de fenda, um cutelo
um bisturi velho e o estilete
enferrujado.
amolei o facão.
ao lado, o botijão
vazio de meus medos,
o cavalete jazido
de desejos,
uma arruela solta
como anel.
primeiro
livrando os braços
retirei a camiseta
básica branca
uniforme.
calculei entre os seios o espaço
inexato onde você morava
e usei todos os instrumentos
para arrancar, sorrindo
entre fagulhas
o coração.
era ele ou eu ou
a desilusão.
jaz no chão
de ferro
essa peça rara.
na oficina
ninguém repara
a dor.
*****
09 URUTAU / FANTASMAVE
a mãe-da-lua é coruja
corva e carcará,
mede mais de palmo
sem contar o rabo
quando muitas
são uma corja
quese camufla há dois
milhões de anos
quando uma
quando duas
quando quer
parece um pau
e sua cria
pedaço de ave parada
longe dos humanos
dentro das humanas
foi
não foi
foi
não foi
de inveja lançaram
uma história de presságios ruins
anúncios de mãe
tudo mentira!
em seu voos
de noturnagens
espalha o canto alegre
das mulheres tristes
as falas breves
das mulheres céleres:
uma criança no braço
um homem grosso
um cesto de roupas
um osso sujo de carne
para o jantar
das mulheres mansas:
um choro fácil
um batom bege
um vestidinho claro
um não que não
se ouve
das mulheres fartas:
um martelo frio
uma arte perigosa
um grelo duro
uma outra
mulher macia
das mulheres frias:
um caderno aramado
um biscoito velho
uma flor bizarra
uma palavra serve
para enferrujar
das mulheres grandes:
um sapato apertado
um cabelo roxo
um brinco no olho
uma bunda gorda
um dedo na cara
contra o mau olhar
das mulheres feitas:
uma coxa mole
uma toalha em sangue
um peito cruzado
um fogão sujo
um na pia fode
um útero enorme
onde se nadar
foi
não foi
foi
não foi
agora vai
─ eu voo vou vejo
com dois olhos doidos ─
uma revoada
de nyctibiidaes
vassouras e chapéus de couro
fazendo sombra na lua
ou em dias estrelados
─
mas você não vê.
*****
12 UTP
I - Mitra
O deus dos Utópicos, dos
Desvalidos
que Morus aprendeu com
Hitlodeu.
II - Ermético
o deus da Guerra e da
Família
com mais de dois braços e
pernas
feito imagem, escultura
hindu.
III - Sumítica
a moeda de um Tempo
(sinal de outro apocalipse)
que os alquimistas fabricam
aos tonéis.
IV - Nós
aqui sem sanidade,
padecendo
de uma civilização
inconcebível,
concebida,
não passamos de chips, microvida,
perdidos entre o hard e o software.
*****
18 FESTA DA LUZ E SOMBRA
[para BT.]
da tailândia a liverpool
num ápice
cruza os ares o búfalo
asas gigantescas
e voando com ele
vão as sombras das árvores
do vale.
quem o viu se libertar
da frágil amarra
pôde vê-lo pela pista
verdazulada: toneladas
de sonho a galope.
descoberto pelo homem
o bicho é dócil
como se ignorasse
a morte
na simetria afiadíssima
dos cornos.
criança levada que fugiu
dos cuidados de um tio
cujos olhos foram capazes
de achá-lo, domesticado.
o mimetismo do seu torso
paralisado se fundia
às plantas e ao tudo
invisível menos à retina
acostumada desse outro:
seu-tio-filho-ele-mesmo-ontem.
nessas paragens
o traçado ocidental
perde os sentidos
se desgoverna, des-
falece, é o leito de um rio
seco. o ordenamento
não é o mesmo aqui
uncle boonmee, nem
mesmo lembramos
que somos hoje.
não consideramos o espírito
das flores e escondemos
as dores
no mais distante possível.
ainda sei me transportar
invocando geografia
e amando nomes: laos, mekong,
duras, por mim, por você, velha
poesia de gullar.
boonmee. pequenas
mariposas
e fantasmas, camaradas.
*****
27 A MOSCA
Incansável na vidraça
bate e volta
elástica
a mosca.
Que haverá de tão doce
depois da janela?
Que fruta, que açúcar
esperam por ela?
Doçura de vento?
Pedaço de voo?
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