quarta-feira, 5 de abril de 2023

Cassandra Veras

00 MIOGRAFIA, grafia do músculo involuntário

 sou paraibana, campinense de fato, coração e outros órgãos. escrevo desde que minha vó me ensinou a ler e fazer isso de modo que pudesse criar uma carta ao pai que andava dirigindo pelo país afora. todo dia das mães – desde que tinha uns dez, ou doze – e em seu aniversário eu escrevia umas rimas para ela, “a mama” (uma prima me ensinou que se fazia isso contando sílabas). e, não sei... gosto das palavras, embora seja um amor unilateral (história da minha vida). queria ser compositora, mas; mesmo assim, amigas e amigos gravaram umas – amigo é pra essas coisas, salve! em 1985 acabei num curso que cortou águas na minha existência: bacharelado em história. queria ser arqueóloga, mas; mas nada –longa história. em 1995, como sempre amei computadores e bibliotecas, fiz mestrado em informática pra tentar suster uma obsessão: programar um software gerenciador de bibliotecas, e o anjo safado me levou até o fim. na sequência, fiz doutorado em sociologia, porque identidade fixa é coisa perigosa. já mais pra agora, uns 2018, me apaixonei pela história da áfrica e inventei um ead em história e cultura afro-brasileira, porque não consigo nunca me encaixar nos editais e dessa forma imaginei diminuir o abismo entre as humanas e as exatas. na pandemia resolvi fazer a licenciatura em história: tarde demais, não, nunca é tarde, sussurrou alguém para bárbara: quem sabe ainda dou umas aulas no estadual da prata? e hoje, num direct, vem o poeta me chamar. ah! primeira coisa foi desconfiar que era hacker querendo meus sagrados dados. feiquinius! não era. então tô aqui



05 CORES DO TÉDIO

 

Autêntico pranto

fruto inédito do tédio

insípido suco de vidro

claro e cortante colírio:

inútil remédio.

 

Idêntica gota

pérola gêmea do ódio

dor do iodo na carne

lágrima de grave saudade:

suave minério.




*****




06 OFICINA DO ADEUS

 

da caixa de ferramentas

retirei o martelo, o alicate,

a furadeira, alguns pregos

 

chaves de fenda, um cutelo

um bisturi velho e o estilete

enferrujado.

amolei o facão.

 

ao lado, o botijão

vazio de meus medos,

o cavalete jazido

de desejos,

uma arruela solta

como anel.

 

primeiro

livrando os braços

retirei a camiseta

básica branca

uniforme.

 

calculei entre os seios o espaço

inexato onde você morava

e usei todos os instrumentos

para arrancar, sorrindo

entre fagulhas

o coração.

 

era ele ou eu ou

a desilusão.

 

jaz no chão

de ferro

essa peça rara.

 

na oficina

ninguém repara

a dor.




*****




09 URUTAU / FANTASMAVE

 

a mãe-da-lua é coruja

corva e carcará,

mede mais de palmo

sem contar o rabo

 

quando muitas

são uma corja

quese camufla há dois

milhões de anos

 

quando uma

quando duas

quando quer

parece um pau

e sua cria

 

pedaço de ave parada

longe dos humanos

dentro das humanas

 

foi

não foi

foi

não foi

 

de inveja lançaram

uma história de presságios ruins

anúncios de mãe

 

tudo mentira!

 

em seu voos

de noturnagens

espalha o canto alegre

das mulheres tristes

as falas breves

 

das mulheres céleres:

uma criança no braço

um homem grosso

um cesto de roupas

um osso sujo de carne

para o jantar

 

das mulheres mansas:

um choro fácil

um batom bege

um vestidinho claro

um não que não

se ouve

 

das mulheres fartas:

um martelo frio

uma arte perigosa

um grelo duro

uma outra

mulher macia

 

das mulheres frias:

um caderno aramado

um biscoito velho

uma flor bizarra

uma palavra serve

para enferrujar

 

das mulheres grandes:

um sapato apertado

um cabelo roxo

um brinco no olho

uma bunda gorda

um dedo na cara

contra o mau olhar

 

das mulheres feitas:

uma coxa mole

uma toalha em sangue

um peito cruzado

um fogão sujo

um na pia fode

um útero enorme

onde se nadar

 

foi

não foi

foi

não foi

 

agora vai

─ eu voo vou vejo

com dois olhos doidos ─

uma revoada

de nyctibiidaes

vassouras e chapéus de couro

fazendo sombra na lua

ou em dias estrelados

─ mas você não vê.




*****




12 UTP

 

 

I - Mitra

      O deus dos Utópicos, dos Desvalidos

      que Morus aprendeu com Hitlodeu.

 

II  - Ermético

       o deus da Guerra e da Família

       com mais de dois braços e pernas

       feito imagem, escultura hindu.

 

III - Sumítica

       a moeda de um Tempo

       (sinal de outro apocalipse)

       que os alquimistas fabricam

       aos tonéis.

 

IV  - Nós

        aqui sem sanidade, padecendo

        de uma civilização inconcebível,

                                        concebida,

        não passamos de chips, microvida,

        perdidos entre o hard e o software.




*****




18 FESTA DA LUZ E SOMBRA
[para BT.]

 

da tailândia a liverpool

num ápice

cruza os ares o búfalo

asas gigantescas

e voando com ele

vão as sombras das árvores

do vale.

 

quem o viu se libertar

da frágil amarra

pôde vê-lo pela pista

verdazulada: toneladas

de sonho a galope.

 

descoberto pelo homem

o bicho é dócil

como se ignorasse

a morte

na simetria afiadíssima

dos cornos.

 

criança levada que fugiu

dos cuidados de um tio

cujos olhos foram capazes

de achá-lo, domesticado.

o mimetismo do seu torso

paralisado se fundia

às plantas e ao tudo

invisível menos à retina

acostumada desse outro:

seu-tio-filho-ele-mesmo-ontem.

 

nessas paragens

o traçado ocidental

perde os sentidos

se desgoverna, des-

falece, é o leito de um rio

seco. o ordenamento

não é o mesmo aqui

uncle boonmee, nem

mesmo lembramos

que somos hoje.

não consideramos o espírito

das flores e escondemos

as dores

no mais distante possível.

 

ainda sei me transportar

invocando geografia

e amando nomes: laos, mekong,

duras, por mim, por você, velha

poesia de gullar.

 

boonmee. pequenas mariposas

e fantasmas, camaradas.




*****




27 A MOSCA

 

Incansável na vidraça

bate e volta

elástica

a mosca.

 

Que haverá de tão doce

depois da janela?

 

Que fruta, que açúcar

esperam por ela?

 

Doçura de vento?

Pedaço de voo?

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Francc Neto

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