quarta-feira, 1 de março de 2023

Bráulio Tavares

 Bráulio Tavares nasceu em Campina Grande. É escritor, compositor, poeta, cordelista e estudioso da cultura popular. Tem vários livros publicados e publica regularmente no blog Mundo Fantasmo www.mundofantasmo.blogspot.com




 

travessia


O lar

do passarinho

é

o ar

não

é o ninho.

 

 

A coisa

 

Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa

que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo

com pernas que ela terá de crescer de si própria;    

e que seja ela uma máquina viva, uma máquina 

capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.

Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas

e metonímias e quarks e transistores e estames

e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...     

Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa

que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam

e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,

e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos

e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,

e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia

tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando

com meus olhos de homem, me sorrindo

com tantas bocas de mulher, me envolvendo

com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,

fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,

como um setor a mais invadido um círculo já completo.

Eu quero que essa coisa existisse, assim como     

eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.

Coisa criada, cobra criante, serpente criança,

criatura sentiente, existinte, sente, pensante,

cercada pela linha brusca do seu até-aqui

Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá    

como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,    

e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.

Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.

Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,

e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.

 

 

 

NA HORA DO LOBO

Quando um homem consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;

ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;

quando um homem fatiga a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;

quando a taça em que bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;

quando um homem de boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.

 

 

O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(romance policial brasileiro)

 

Dez negrinhos numa cela
e um deles não mais se move.
Manhã cedinho eles contam,
e só tem nove.

Nove negrinhos fugiram
e um deles, o mais afoito,
lascou-se: os guardas pegaram.
Ficaram oito.

Oito negrinhos trabalham
de revólver e canivete.
Roupa cáqui vem chegando;
restam só sete.

Sete negrinhos seguiam
pela rua de vocês.
Um pai chamou a polícia.
Correram seis.

Seis negrinhos dão o balanço
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
viraram cinco.

Cinco negrinhos de olho
à saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira,
sobraram quatro.

Quatro negrinhos trombando
todos quatro de uma vez;
um, o transeunte agarra,
mas não os três.

Três negrinhos batalhando
feijão, farinha e arroz.
Um deu-se mal — a comida
dava pra dois.

Dois negrinhos se embebedam
de brahma, cachaça ou rum.
Discussão; briga; navalha;
fica esse um.

Um negrinho vai-se embora
se mistura à multidão.
Por trás desse derradeiro
vem um milhão.

 

 

UM MUNDO 

 

—      Além do alcance do verso,
um mundo rola.
Quase o tocamos... tão perto,
e não se o toca.
Seu rosto é feito de ruas.
Passa, e desarquitetura
a nossa órbita.

—      Como são fundos seus rastros,
fortes seus ventos!
Seus contornos tão exatos,
conquanto imensos...
Nós o sentimos passando
e nem sequer suspeitamos
que estamos dentro.

—      O verso jamais o encaixa
nos seus arquivos
e nem lhe sequestra a carga
substantiva.
Nunca o algema a seus pactos
e o vê desdobrar-se, intato,
inatingido.

—      Aquém desse mundo, o verso
se desmascara:
lavoura de estéreis seixos
e nula safra.
Ourivesaria efémera:
lapidar límpidas gemas
sabendo-as falsas.

 

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