Bráulio Tavares nasceu em Campina Grande. É escritor, compositor, poeta, cordelista e estudioso da cultura popular. Tem vários livros publicados e publica regularmente no blog Mundo Fantasmo www.mundofantasmo.blogspot.com
travessia
O lar
do passarinho
é
o ar
não
é o ninho.
A coisa
Eu
quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa
que
se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo
com
pernas que ela terá de crescer de si própria;
e
que seja ela uma máquina viva, uma máquina
capaz
de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.
Uma
coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.
Uma
máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas
e
metonímias e quarks e transistores e estames
e
plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...
Quero
apenas que seja uma coisa minha, uma coisa
que
eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam
e
quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,
e
vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos
e
martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,
e
gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia
tremeluzindo
no centro da folha branca, me olhando
com
meus olhos de homem, me sorrindo
com
tantas bocas de mulher, me envolvendo
com
sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,
fincando
uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,
como
um setor a mais invadido um círculo já completo.
Eu
quero que essa coisa existisse, assim como
eu
quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.
Coisa
criada, cobra criante, serpente criança,
criatura
sentiente, existinte, sente, pensante,
cercada
pela linha brusca do seu até-aqui
Essa
coisa me conhecerá e não me reconhecerá
como
seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,
e
de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.
Então
pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.
Finalmente
leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,
e
disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.
NA HORA DO LOBO
Quando um homem
consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;
ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;
quando um homem fatiga
a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;
quando a taça em que
bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;
quando um homem de
boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.
O
CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(romance
policial brasileiro)
Dez negrinhos numa
cela
e um deles não mais se move.
Manhã cedinho eles contam,
e só tem nove.
Nove negrinhos fugiram
e um deles, o mais afoito,
lascou-se: os guardas pegaram.
Ficaram oito.
Oito negrinhos
trabalham
de revólver e canivete.
Roupa cáqui vem chegando;
restam só sete.
Sete negrinhos seguiam
pela rua de vocês.
Um pai chamou a polícia.
Correram seis.
Seis negrinhos dão o
balanço
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
viraram cinco.
Cinco negrinhos de
olho
à saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira,
sobraram quatro.
Quatro negrinhos
trombando
todos quatro de uma vez;
um, o transeunte agarra,
mas não os três.
Três negrinhos
batalhando
feijão, farinha e arroz.
Um deu-se mal — a comida
dava pra dois.
Dois negrinhos se
embebedam
de brahma, cachaça ou rum.
Discussão; briga; navalha;
fica esse um.
Um negrinho vai-se
embora
se mistura à multidão.
Por trás desse derradeiro
vem um milhão.
UM MUNDO
—
Além do alcance do verso,
um mundo rola.
Quase o tocamos... tão perto,
e não se o toca.
Seu rosto é feito de ruas.
Passa, e desarquitetura
a nossa órbita.
—
Como são fundos seus rastros,
fortes seus ventos!
Seus contornos tão exatos,
conquanto imensos...
Nós o sentimos passando
e nem sequer suspeitamos
que estamos dentro.
—
O verso jamais o encaixa
nos seus arquivos
e nem lhe sequestra a carga
substantiva.
Nunca o algema a seus pactos
e o vê desdobrar-se, intato,
inatingido.
—
Aquém desse mundo, o verso
se desmascara:
lavoura de estéreis seixos
e nula safra.
Ourivesaria efémera:
lapidar límpidas gemas
sabendo-as falsas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário