sexta-feira, 31 de março de 2023

Deborah Dornellas

Deborah Dornellas nasceu no Rio de Janeiro, morou muito tempo em Brasília e atualmente reside na Paraíba. É escritora, tradutora e artista plástica. Fez mestrado em História Cultural (UnB) e é pós-graduada em Formação de Escritores (ISE Ver Cruz). Entre seus livros publicados destacamos Triz (poemas) e o romance Por cima do mar. Venceu o Prêmio Literário Casa de las Américas em 2019 na categoria “Literatura Brasileira”.

 


 

CAMINHO

 

estão me faltando pedaços
é o efeito do tempo
frágeis alegrias já não se (me) sustentam
coisas úteis, se fugazes
desprendem-se e caem do fio das certezas
piso nelas e me machuco
mas meus pés criam casca

 



*****

 



MEMBROS



minhas mãos são mais escuras

do que a carne entre as minhas pernas

e ásperas, vincadas 

na ponta dos dedos há unhas ressecadas

e a pele se enruga em cada falange

formando círculos concêntricos


minhas mãos geladas às vezes ardem 

às vezes se mostram às vezes são 

às vezes me cabem às vezes não


já se acostumaram ao fogo e

ao contato com a água:

não se queimam nem se dissolvem

movem-se


fazem carinho comida sexo lavam a louça a pia a roupa o corpo


minhas pernas só me levam aonde minhas mãos sonham

 


*****

 


AMPULHETA 



afio os sentidos nas ausências

amolo as unhas numa pedra

lavo o rosto com as mãos em concha 

enxugo respiro e olho no espelho

: não sou eu

com essa pele marcada


há pouco entendi que não governo o tempo

apenas adivinho as horas

(olho para o antes

vejo o através e o adiante)


aprendi

: calo quando quero ouvir

falo quando quero dizer

deixo a areia cair

 



***** 





SALTO

 

daqui a dois passos
posso despencar num abismo
e nunca chegar ao fundo
ou
tropeçar e cair no chão árido
das margens do buraco
e me salvar da queda livre
ou
construir uma ponte pênsil
e atravessar a garganta
onde lá embaixo
ruge o rio turvo
ou
desenhar um trampolim
pronto para o mergulho
e saltar de olhos fechados
ou
tecer uma teia no vazio
e me enredar nela
para capturar insetos
e comê-los inteiros
mortos ou vivos
se estiver com fome
ou
chegar a um espelho d’água
onde enxergue minha imagem refletida
e ela me diga: teu nome é narciso
ou
acorrentar meus tornozelos
a uma pedra imensa
com destreza formidável
então
bater muitas vezes as asas que não tenho
para alçar voo sobre o vale
de onde veria que tudo se move
ou
perceber simplesmente
que o espaço
é o cumprimento
do tempo

 


*****

 


LONGE

 

ausência é assombro
corte na casca do tempo
presença do avesso 
copo vazio 
corpo endereço 
ausência é cisterna seca
pântano movediço 
cais sem trapiche 
labirinto sem fio
fio sem prumo 
noite sem dia 
fruta sem sumo

ausência é teu ombro
longe da minha cabeça




*****

 


TEMPO

 

1

na casa antiga: moscas larvas vermes mofo
um véu delgado sobre as coisas
frutas secas doces
muito mais doces porque secas
sementes que não germinam 
e apodrecem novas
dias que guardam noites de insônia e febres
galos remotos e sinos repicando as horas


2

acorda levanta anda olha urina lava escova come veste sai entra volta senta assiste come dorme acorda boceja levanta anda despe defeca limpa lava enxuga veste come anda anda xinga volta come sonha chora dorme acorda lembra esquece 

envelhece

 

3

nasceu entre fluidos
vive entre flechas
morrerá entre flores





Fote: Ruído Manifesto e Miradas

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