Deborah Dornellas nasceu no Rio de Janeiro, morou muito tempo em Brasília e atualmente reside na Paraíba. É escritora, tradutora e artista plástica. Fez mestrado em História Cultural (UnB) e é pós-graduada em Formação de Escritores (ISE Ver Cruz). Entre seus livros publicados destacamos Triz (poemas) e o romance Por cima do mar. Venceu o Prêmio Literário Casa de las Américas em 2019 na categoria “Literatura Brasileira”.
CAMINHO
estão me faltando pedaços
é o efeito do
tempo
frágeis alegrias já não se (me) sustentam
coisas úteis, se fugazes
desprendem-se e caem do fio das certezas
piso nelas e me machuco
mas meus pés criam casca
*****
MEMBROS
minhas mãos são mais escuras
do que a carne entre as minhas pernas
e ásperas, vincadas
na ponta dos dedos há unhas ressecadas
e a pele se enruga em cada falange
formando círculos concêntricos
minhas mãos geladas às vezes ardem
às vezes se mostram às vezes são
às vezes me cabem às vezes não
já se acostumaram ao fogo e
ao contato com a água:
não se queimam nem se dissolvem
movem-se
fazem carinho comida sexo lavam a louça a pia a roupa o corpo
minhas pernas só me levam aonde minhas mãos sonham
*****
AMPULHETA
afio os sentidos nas ausências
amolo as unhas numa pedra
lavo o rosto com as mãos em concha
enxugo respiro e olho no espelho
: não sou eu
com essa pele marcada
há pouco entendi que não governo o tempo
apenas adivinho as horas
(olho para o antes
vejo o através e o adiante)
aprendi
: calo quando quero ouvir
falo quando quero dizer
deixo a areia cair
*****
SALTO
daqui a dois passos
posso despencar num abismo
e nunca chegar ao fundo
ou
tropeçar e cair no chão árido
das margens do buraco
e me salvar da queda livre
ou
construir uma ponte pênsil
e atravessar a garganta
onde lá embaixo
ruge o rio turvo
ou
desenhar um trampolim
pronto para o mergulho
e saltar de olhos fechados
ou
tecer uma teia no vazio
e me enredar nela
para capturar insetos
e comê-los inteiros
mortos ou vivos
se estiver com fome
ou
chegar a um espelho d’água
onde enxergue minha imagem refletida
e ela me diga: teu nome é narciso
ou
acorrentar meus tornozelos
a uma pedra imensa
com destreza formidável
então
bater muitas vezes as asas que não tenho
para alçar voo sobre o vale
de onde veria que tudo se move
ou
perceber simplesmente
que o espaço
é o cumprimento
do tempo
*****
LONGE
ausência é assombro
corte na casca do tempo
presença do avesso
copo vazio
corpo endereço
ausência é cisterna seca
pântano movediço
cais sem trapiche
labirinto sem fio
fio sem prumo
noite sem dia
fruta sem sumo
ausência é teu ombro
longe da minha cabeça
*****
TEMPO
1
na casa antiga: moscas larvas vermes
mofo
um véu delgado sobre as coisas
frutas secas doces
muito mais doces porque secas
sementes que não germinam
e apodrecem novas
dias que guardam noites de insônia e
febres
galos remotos e sinos repicando as
horas
2
acorda levanta anda olha urina lava
escova come veste sai entra volta senta assiste come dorme acorda boceja
levanta anda despe defeca limpa lava enxuga veste come anda anda xinga volta
come sonha chora dorme acorda lembra esquece
envelhece
3
nasceu entre fluidos
vive entre flechas
morrerá entre flores
Fote: Ruído Manifesto e Miradas
Nenhum comentário:
Postar um comentário