Analice Chaves nasceu em Belém
do Pará, mas vive em João Pessoa desde os 8 anos. É autora dos livros de poesia
Setembrices e outros resquícios de
revolução (A União, 2015) e Um poema
é um horizonte entempestado (Penalux, 2022). Participou também da produção
e direção de espetáculos multiatísticos em João Pessoa. Graduada em Letras pela
UFPB, trabalha como professora e compartilha suas poesia através das redes
sociais. Na cabeceira estão Ana Martins Marques, Matilde Campilho, Nicanor
Parra, Emily Dickinson e outros.
THE CITY IS THE HOUSE
A cidade
é a casa, eu sinto assim
e a
tempestade, o cão doméstico que anda sempre atrás de mim
Não tenho
pressa pois estou em casa
posso
chorar porque estou em casa
posso
errar os caminhos com calma
e tenho,
espalhados pelos trajetos, meus cantos de costume:
Um
cantinho para deitar na areia
um
lugarzinho onde falar sozinha
um
espacinho para ser poeta em paz
*****
[sem
título]
Uma
vez por ano chove em João Pessoa vinte e quatro horas seguidas
Os
noticiários anunciam que a chuva de todo um inverno coube em um dia e
por um dia inteiro moramos num firmamento entempestado e sofremos de medo dos
trovões
Uma
vez por ano é preciso mudar as rodas diárias porque desaba um oceano
Há um guarda de trânsito avisando aos motoristas que o resto do caminho não cabe em uma tarde e faz-se necessário abrir os olhos em uma outra parte da cidade: nova como em uma viagem
Exatamente
assim é um poema:
Escolho
esta palavra com muito cuidado
porque
preciso que ela bloqueie uma avenida
preciso
fazer com que os motoristas sejam carregados como parte da corrente
Escolho
esta palavra como quem anuncia uma enchente
Como
quem escolhe uma árvore centenária para desabar sobre via
Para
que o primeiro coração que a encontre precise dar meia volta
estar
perdido, mudar de rota
até
que a minha palavra lhe pareça o lado pouco visitado da cidade
E
abre-lhes os olhos como os de quem nasce
bem
no meio de uma trovoada
de
susto, surpresa, tremor e chacoalhada
E
é para isso que existe a poesia:
para
o que antes parecia ser nada
(publicado
em Um Poema é um Horizonte Entempestado.
Editora Penalux, 2022)
SAUDADE
Cidade, tenho
recentemente estado à beira de um colapso de saudades tuas
o que
chega a ser até imprudente
pois és
tudo o que assim me rodeia
Tenho,
nos últimos tempos, me debulhado em saudades absurdas;
do que
nunca foi, do que nunca deixou de ser
Saudade
do dia de hoje, saudade do dia de ontem, de todos os dias da vida
Sinto
saudade dos lugares onde estive, maiores e menores que ti
saudade
de, sem fôlego, pelo sol ou pelo susto, subir ladeiras alheias
e chego a
ter saudade de achar que lembro de ter visto algo antes
De ter
cinco anos a menos, dez, quinte, vinte e cinco, quando eu nem estava
Tenho
saudade da África e nunca cruzei nenhum oceano
Me sufoco
de saudades de uma canção que não me lembro
Tenho
saudades de um amor que acho não ter amado
De um
amor que nunca foi meu
Tenho
grandiosas e terríveis saudades do que poderia ter sido e não foi
Ouço uma
canção e tenho saudade do segundo anterior
Tenho
saudade do sol e é meio dia em ponto
De arder
em febre, sangrar os joelhos
Sinto
saudades de mim
E acho
que assim enlouqueço
Sinto
vontades de casa
Saudades
desse instante segundo que agora passa
E poderia
ter sido outro
Não deve
haver um amor no mundo pelo qual eu não tenha sofrido saudades
Deste
poema eu sinto saudade
Sinto
saudade deste poema exato
Porque
pensei que ele diria tudo
*****
POR AMOR AOS
AMORES-FANTASMAS
Se a
solidão fosse um lugar,
talvez
não fosse uma ilha
e nenhuma
mansão escura como
onde vive
Miss Havisham
na
verdade, seria qualquer oposto de escuro
porque tu
estarias comigo
*****
MARÉ
Porque o
toque da cidade é sempre o mesmo
eu mesma
estou aqui e debaixo da maior lua do século ao mesmo tempo
aqui e no
meio de um carnaval tão barulhento
aqui e no
silêncio do passar das horas das praças vazias
Porque é
o toque da cidade que me arrepia
até
quando a maior das tempestades desacelera o trânsito
até
quando perder-se e encontrar-se são faces do mesmo encanto
até
quando, trôpega e adoentada, acho a saída
Quando o
pedaço de asfalto sob meus pés é o ponto de partida
Tudo
sinto, ao meu redor tudo ouço, ao meu redor
O
luso-sotaque de algum turista nas bancas da praia
O uivo
das corujas respondendo as motocicletas da madrugada
O
sussurro dos bichos que habitam as restingas
E, na
noite certa, até o chiar da luz da lua expondo a distância do horizonte por
trás do mar
Tudo se
repete e eu sou parte disso
Como ave
migratória, bando de tartarugas
tambores
de ala ursas
Volto
sempre ao mesmo lugar
*****
A
AUDIÇÃO DAS AVES DE RAPINA
Leonardo,
há na
Amazônia uma espécie de águia que mede dois metros e caça pequenos mamíferos
vi uma
vez uma reportagem sobre como carcaças são encontradas nos seus ninhos
são
hárpias
As
hárpias, quando muito cedo, sobrevoam a floresta a mostrar a seus filhotes que
o mundo é lindo
elas
reconhecem as canções que tocam os povos e as canções que sopram os ventos
Acreditas?
Eu acredito
sobrevoaria
dezenas de florestas se a mim coubesse…
Já
notaste carcarás fazerem círculos por sobre a mata?
Já
avistaste gaviões a flutuar por cima dos prédios?
Eles
passeiam contra a luz na rota dos monomotores e são muito maiores do que pensam
os homens
Há algo
no teu nome de fera que me lembra um tomar fôlego
que se o
voo de um pássaro místico sobrevoando a cidade fosse um vocábulo, talvez fosse
o teu
que se os
grandes felinos povoassem os céus das metrópoles assim levantariam os corpos do
chão: como se pronuncia o teu nome
Ninguém
nunca te disse isso
Também,
as aves de rapina têm todas a audição tão apurada
que as
hárpias amazônicas ouvem a respiração das presas que se escondem entre a
folhagem
e os
gaviões urbanos escutam as canções que me sugeres enquanto puxas o céu com uma
linha pra o teu lado do globo
já
ouviram todas elas antes, porque alguém que as tocou pela primeira vez se punha
debaixo de uma janela
Quando me
perguntas se eu gostaria de conhecer um compositor russo que me estilhaçaria o
coração e eu respondo: claro, por que não?
ocupam os
topos dos postes e as quinas das coberturas dos arranha céus
assim,
toda vez que teu arco toca as cordas, reges a pulsação do peito de um pássaro
forte
Eles
todos te conhecem
Só
consigo pensar que alguém capaz de domar o peito das feras teria um nome como o
teu
É o teu
nome, a floresta, um compositor russo, e a rota dos monomotores
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