quinta-feira, 30 de março de 2023

Analice Chaves

Analice Chaves nasceu em Belém do Pará, mas vive em João Pessoa desde os 8 anos. É autora dos livros de poesia Setembrices e outros resquícios de revolução (A União, 2015) e Um poema é um horizonte entempestado (Penalux, 2022). Participou também da produção e direção de espetáculos multiatísticos em João Pessoa. Graduada em Letras pela UFPB, trabalha como professora e compartilha suas poesia através das redes sociais. Na cabeceira estão Ana Martins Marques, Matilde Campilho, Nicanor Parra, Emily Dickinson e outros.

 


 

THE CITY IS THE HOUSE

A cidade é a casa, eu sinto assim
e a tempestade, o cão doméstico que anda sempre atrás de mim
Não tenho pressa pois estou em casa
posso chorar porque estou em casa
posso errar os caminhos com calma
e tenho, espalhados pelos trajetos, meus cantos de costume:
Um cantinho para deitar na areia
um lugarzinho onde falar sozinha
um espacinho para ser poeta em paz



*****

 


[sem título]

 

Uma vez por ano chove em João Pessoa vinte e quatro horas seguidas
Os noticiários anunciam que a chuva de todo um inverno coube em um dia e por um dia inteiro moramos num firmamento entempestado e sofremos de medo dos trovões

Uma vez por ano é preciso mudar as rodas diárias porque desaba um oceano

Há um guarda de trânsito avisando aos motoristas que o resto do caminho não cabe em uma tarde e faz-se necessário abrir os olhos em uma outra parte da cidade: nova como em uma viagem

 

Exatamente assim é um poema:
Escolho esta palavra com muito cuidado
porque preciso que ela bloqueie uma avenida
preciso fazer com que os motoristas sejam carregados como parte da corrente
Escolho esta palavra como quem anuncia uma enchente
Como quem escolhe uma árvore centenária para desabar sobre via
Para que o primeiro coração que a encontre precise dar meia volta
estar perdido, mudar de rota
até que a minha palavra lhe pareça o lado pouco visitado da cidade
E abre-lhes os olhos como os de quem nasce
bem no meio de uma trovoada
de susto, surpresa, tremor e chacoalhada

E é para isso que existe a poesia:
para o que antes parecia ser nada

 

(publicado em Um Poema é um Horizonte Entempestado. Editora Penalux, 2022)

 

*****

 


SAUDADE

Cidade, tenho recentemente estado à beira de um colapso de saudades tuas
o que chega a ser até imprudente
pois és tudo o que assim me rodeia
Tenho, nos últimos tempos, me debulhado em saudades absurdas;
do que nunca foi, do que nunca deixou de ser
Saudade do dia de hoje, saudade do dia de ontem, de todos os dias da vida
Sinto saudade dos lugares onde estive, maiores e menores que ti
saudade de, sem fôlego, pelo sol ou pelo susto, subir ladeiras alheias
e chego a ter saudade de achar que lembro de ter visto algo antes
De ter cinco anos a menos, dez, quinte, vinte e cinco, quando eu nem estava
Tenho saudade da África e nunca cruzei nenhum oceano
Me sufoco de saudades de uma canção que não me lembro
Tenho saudades de um amor que acho não ter amado
De um amor que nunca foi meu
Tenho grandiosas e terríveis saudades do que poderia ter sido e não foi
Ouço uma canção e tenho saudade do segundo anterior
Tenho saudade do sol e é meio dia em ponto
De arder em febre, sangrar os joelhos
Sinto saudades de mim
E acho que assim enlouqueço
Sinto vontades de casa
Saudades desse instante segundo que agora passa
E poderia ter sido outro
Não deve haver um amor no mundo pelo qual eu não tenha sofrido saudades

Deste poema eu sinto saudade
Sinto saudade deste poema exato
Porque pensei que ele diria tudo




*****

 


POR AMOR AOS AMORES-FANTASMAS

Se a solidão fosse um lugar,
talvez não fosse uma ilha
e nenhuma mansão escura como
onde vive Miss Havisham
na verdade, seria qualquer oposto de escuro
porque tu estarias comigo



*****

 

 

MARÉ

Porque o toque da cidade é sempre o mesmo
eu mesma estou aqui e debaixo da maior lua do século ao mesmo tempo
aqui e no meio de um carnaval tão barulhento
aqui e no silêncio do passar das horas das praças vazias

Porque é o toque da cidade que me arrepia
até quando a maior das tempestades desacelera o trânsito
até quando perder-se e encontrar-se são faces do mesmo encanto
até quando, trôpega e adoentada, acho a saída

Quando o pedaço de asfalto sob meus pés é o ponto de partida
Tudo sinto, ao meu redor tudo ouço, ao meu redor
O luso-sotaque de algum turista nas bancas da praia
O uivo das corujas respondendo as motocicletas da madrugada
O sussurro dos bichos que habitam as restingas
E, na noite certa, até o chiar da luz da lua expondo a distância do horizonte por trás do mar

Tudo se repete e eu sou parte disso
Como ave migratória, bando de tartarugas
tambores de ala ursas
Volto sempre ao mesmo lugar



*****

 


A AUDIÇÃO DAS AVES DE RAPINA

 

Leonardo,
há na Amazônia uma espécie de águia que mede dois metros e caça pequenos mamíferos
vi uma vez uma reportagem sobre como carcaças são encontradas nos seus ninhos
são hárpias
As hárpias, quando muito cedo, sobrevoam a floresta a mostrar a seus filhotes que o mundo é lindo
elas reconhecem as canções que tocam os povos e as canções que sopram os ventos
Acreditas? Eu acredito
sobrevoaria dezenas de florestas se a mim coubesse…
Já notaste carcarás fazerem círculos por sobre a mata?
Já avistaste gaviões a flutuar por cima dos prédios?
Eles passeiam contra a luz na rota dos monomotores e são muito maiores do que pensam os homens
Há algo no teu nome de fera que me lembra um tomar fôlego
que se o voo de um pássaro místico sobrevoando a cidade fosse um vocábulo, talvez fosse o teu
que se os grandes felinos povoassem os céus das metrópoles assim levantariam os corpos do chão: como se pronuncia o teu nome
Ninguém nunca te disse isso
Também, as aves de rapina têm todas a audição tão apurada
que as hárpias amazônicas ouvem a respiração das presas que se escondem entre a folhagem
e os gaviões urbanos escutam as canções que me sugeres enquanto puxas o céu com uma linha pra o teu lado do globo
já ouviram todas elas antes, porque alguém que as tocou pela primeira vez se punha debaixo de uma janela
Quando me perguntas se eu gostaria de conhecer um compositor russo que me estilhaçaria o coração e eu respondo: claro, por que não?
ocupam os topos dos postes e as quinas das coberturas dos arranha céus
assim, toda vez que teu arco toca as cordas, reges a pulsação do peito de um pássaro forte
Eles todos te conhecem
Só consigo pensar que alguém capaz de domar o peito das feras teria um nome como o teu
É o teu nome, a floresta, um compositor russo, e a rota dos monomotores


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Francc Neto

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