Cândice Guzmán nasceu em Porto Velho - RO, em 1982. Residiu em João Pessoa - PB de 1998 a 2011, período que marcou fortemente sua vida. Graduada em Letras Alemão pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pesquisa sobre a poesia de Joachim Ringelnatz, teve poemas publicados no primeiro volume da Coleção Desaguamentos (Escaleras, 2021), e na antologia Engenho Arretado: poesia paraibana do século XXI (Patuá, 2023). Integra o livro Torsos (Nave, 2023) com a tradução ao alemão do poema Aula de desenho, de Maria Esther Maciel, e a revista Cadernos de Tradução (UFSC, 2021) com a tradução, também ao alemão do poema Calunga Lungara, de Edmilson Almeida Pereira. Atua como professora, tradutora e escreve poesia.
um dia desses
acordei e tinha asas
dei um salta da calçada
e avoei com os pés no chão
minha cabeça
tava meio anuviada
e olhava pros meus pés
pisando em contradição
pensei: danou-se
tudo é mesmo é não é
e quando não der mais pé
será céu ou será não
como se vive nesse meio de
caminho
que tem flor e tem espinhos
asas, pés e coração
é sem se avexar
é sem se avexar
que passarinho ensina
a ser leve e a voar
quando você pediu emprestada
a bússola do meu peito
pra não se perder em minhas
terras
eu não pude fazer muito
mas desejar sorte pra nós
de modo que quando a gente se
embrenha
em terras alheias
usando bússola que nem nossa é
não tem como conjugar
o tal do verbo que se quer evitar
em primeira pessoa, no passado
mais simples que tem
eita
me perdi
a gente diz, né?
mesmo assim lhe emprestei minha
bússola
fiquei meio desorientado
mas pelo menos
você veio em minha direção
tudo está
diferente
alguém sacode
o mundo
e todos os
dias é preciso ocupá-lo
de outra
maneira
treino meu
corpo com
as coisas
caídas
caio
treinando ser coisa
não existem
instruções
para ser
coisa
é preciso
abrir mão da própria língua
é preciso
abrir a boca
e falar o
silêncio das coisas
porque tudo
está diferente
e não há
livro que ensine
sobre ser
nesta vida
por isso
treino meu corpo com
as coisas
e faço todo
silêncio do mundo
faço poemas
com o que posso
pedra
peixe
pessoa
uso também os
limites do corpo
as farpas dos
outros
as portas
fechadas
com tudo que
sobra
escrevo
com tudo que
falta também
faço poemas
com os pés
com o útero e
com a língua
que não falo
porque é como
posso
dizer o que
não se diz
toda vez que
escrevo um poema
me livro da
vida
solto um
pássaro do peito
e voamos
faz falta tua liberdade
arejando a casa com desrimas
tua falta de medida
teus silêncios espalhados
por todos os cômodos
o incômodo de tropeçar neles
ou o medo
de não ter mais no que tropeçar
tuas mãos abrindo veredas
pelo chão de azulejos antigos e
agora essa secura
sem teus rios
molhando meus pés
sem tuas marés altas e
a necessidade de mergulhar todos os dias
passam andorinhas
em minha cabeça
dolores dança
dentro de casa
voo
porque o chão pede
canto para dolores
enquanto arranco
minhas raízes
do corpo de uma mulher
do corpo do tempo
dolores gira e grita
dentro de casa
estoy solita
con dolores
e com minhas andorinhas
o duplo destino do corpo
resiste ao tempo e ao homem
insiste em ser e sai
rasgando o peito
em dois
abre no meio
um caminho
que dá no meio de si
arranca as raízes do chão
confia na vida e na morte
alonga a existência em paz
tudo penetra
a carne é fraca
não resiste
à flecha
à lâmina
ao acaso
ao fogo
o destino do corpo
é ser atravessado
e ele
(digo, o destino)
não tarda a chegar
pontiagudo
afiado
inesperado
e quente
tudo entra no corpo
assim como essa cidade
agora
acordo e faço um acordo comigo mesma todas as manhãs
viver cada hora
e por isso mesmo morrer
aguar o chão seco
nem que seja com a água salgada e inevitável do agora que
vaza de mim
sorrir e chorar
gritar todos os silêncios e mansidões que me enchem o corpo
cortar a vida com a mesma lâmina que escrevo
derrubar de um golpe só tudo que sou com a borduna que
carrego comigo desde que nasci
ensaio todos os dias o sono derradeiro
quando acordo
(como me ocorreu hoje)
tenho uma vontade doida de ser
tão e nada ser
então tomo a lâmina e a borduna nas mãos
e saio em busca de mim
ponho o corpo num balanço
ponho na balança os pesos
leves ou não
são pesos
descanso os pés do chão
entrego meu peso ao embalo das
horas
confio no punho forte de minha
rede
que confia na firmeza da parede
erguida por mãos como as minhas
com a força de braços como os
meus
penso em minha mãe
que um dia foi rede
penso em tudo que sustenta e
balança outros corpos
lembro do acalanto de meu irmão
me dizendo
que toda rede é um pedaço de
útero
e já não estou mais aqui
sonho que tenho punhos fortes
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