sábado, 4 de março de 2023

Inês Monguilhot

Inês Monguilhot nasceu em Recife, residiu por um longo período em João Pessoa e atualmente mora em São Paulo. Escritora, poeta, publicou Ofício das palavras e a trilogia de livros de poemas, Natural, De mim e outros.





Gênesis


No princípio,
quando o mundo se fez,
Deus partindo águas
e escuridão
sacou o dia, a noite, o homem,
a mulher, os cães:
toda a infinidade incompleta.

Daí,
tudo que existe move-se na face do abismo
e procura
a desmesurada boca materna.

  

 


TESTAMENTO


Aos meus, que são tão poucos
deixo,
dos tempos e da distância
o cheiro passado das flores,
tola ilusão de bondade.

Aos que em vida
não me notaram existência,
só para eles, sim,
serei justa: nem terei partido.

 

***


JOGANDO PEDRA

Por vezes, desarrazoado, vem o impulso
de me lançar da cadeira,
pular da ponte,
cair do galho
carregando pedra.

E meticulosamente largar esse inferno,
pisar outra lua,
ir para o céu. Meter os pés no céu.

Os dois pés.

 

***

 

PONTO CARDEAL

 

Sacrifiquei minha alma migrante
em cada altar da cidade.

Dei o que pediram,
tudo que tinha.

Neófita,
já vesti mantel de cinzas
coruscado de olhares.

Agora ninguém me vê,
tenho usucapião de minhas sandálias,
ocupo espaço no metrô.

Meus olhos... são outros.


***


MONUMENTO

De pequena,
antes das primeiras palavras,
já era sábia.

Após as primeiras letras,
comecei a construção de minha ignorância,
esse enorme palácio.


***

 

A VISITA

Quando ela me trinca a taça
me encontrará brindando
o fim de tudo.
Perderei os próximos goles,
mas não o último.
Beberei o vidro e tudo.

 



5:30 pm


Nada muda,
o chá, a tralha toda.
Fazemos e perdemos as mesmas coisas,
petit fours nos pratos, guardanapos no colo,
pires na mão e a colherzinha, sempre esperando no pires.

Perde-se o jogo
mas não se abandona a mesa.
Sempre haverá um sanduíche de pepino,
mais um gole de chá,
mais chá, uma nova mão.
O bom é não precisar falar e falar
qualquer coisa.
Ficar só
na cadeira, observando a louça.

Um casal se afoga no fundo da xícara,
na gravura do bule
e ainda sobra chá para molhar um biscoito.
Ele empurra,
ela perde no balanço um sapatinho.
O campo é lindo, a árvore é bela. Adiantaria falar?
Chá e petit four
uma ótima forma de calar.

Cheio ou vazio o bule será o que é,
feito de louça.
Feito os pratos, feito a xícara
ou o sapatinho
que nem é o de cristal.

Bebo para confirmar
O bule, a xícara, os pratos,
o sanduíche de pepino,
serão algo para conter algo, feito o sapatinho?
E por último,
o que fica dentro do sapatinho?
Adiantaria perguntar?
Adiantaria dizer?

Um olho na entrada,
outro no serviço.
Digo para a mocinha que ela é carregada
e carrega o sapatinho?
Ficaria pronta,
um olho no bule,

outro no pires,
e largaria as visitas
antes do chá?


**********

 

Parábola


Invertebrados e indistinguíveis,
transpirando,
nem mortos ou livres,
após o gozo é impossível cantar.
o
Sexo é coisa molusca.



***********


Breu


Encostar a face noutra,
não sem antes fechar os olhos ao calor,
correr os reposteiros,
a penugem impalpável a varrer
essa nesga rara de pele –
exercícios de lenta prospecção,
premeditação
e pouso.
As marés trazem desprendidas
moléculas voláteis do corpo, reduzindo-o,
inflando-o.
Dissolvem-me com o que não se pode reter.
Põe-me alhures, em vagas corrosivas,
a praia nunca vista.
E quando esta mão ferida tocar,
ancorando-se por instantes nesse corpo,
será inocente. É só para afastar-se,
adiar o choque,
amparar-se nessa queda incontornável,
cair mais.
E se, escorregando ao pescoço,
encontrar uma serpente
a mover-se sob a pele, submersa,
é impossível a língua incontinente
não buscar sabedoria na pulsação dos anéis.
Náufrago, onde tudo esvanece,
sei, nem cometas ou estrelas iluminariam o corpo
perdido neste palácio inseguro
sem janelas.

 

**********


Parada


Nenhum amor se perde,
apenas espera sua hora em algum lugar.
Nenhum amor distraído perde-se. Persiste
esquecido em algum ponto, no ponto em que está.

Nenhum amor se perde, sabe exatamente aonde quer chegar.
Caso nosso ônibus não passe, mude a rota.
O amor não se perde, persiste simplesmente
e espera embarcar.

 

**********


Jardim


Fenda nas pernas,
profunda flor do tempo.

Vermelho.

Todo o sangue
não me redime.


 

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Francc Neto

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