Geraldo Pedrosa de Araújo Alves (Geraldo Vandré) nasceu em João Pessoa-Pb e reside em Petrópolis-RJ. É cantor, compositor, advogado e poeta. Quando saiu do país por ocasião do AI5 recebia o mais alto cachê pago para um artista no Brasil. Deixou o país no auge da carreira e somente voltou a cantar por aqui 50 anos após, em recital realizado com a Orquestra Sinfônica da Paraíba na Sala de Concertos José Siqueira em João Pessoa. Lançou alguns álbuns que se tornaram históricos, a exemplo de "Das terras de Benvirá". Possui uma vasta obra ainda inédita e um "Poema Sinfônico" ainda em construção. O blog Gota Serena publica aqui o poema que deu origem a um dos seus maiores sucessos, a canção "Disparada". Também outros poemas do livro "Cantos Intermediários de Benvirá", lançado em 1973 durante seu exílio no Chile. Em 2018 o Governo do Estado da Paraíba através da SECULT-PB e da Editora A União, publicou a primeira e única edição brasileira que não disponível para venda. Todos os exemplares encontram-se com o autor. Para esta edição Vandré mudou o título do livro para "Poética".
DISPARADA
“E assim se passaram seis ou seis anos e meio,
direitinho, desse jeito,
sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma,
porque esta é uma estória
inventada e não um caso acontecido não
senhor.”
J. Guimarães Rosa
Prólogo
Há sempre muitas estórias
e muita fé pra comprar
os sonhos que elas sugerem,
pra salvar ou pra enganar;
mas essa, vou prevenindo:
Cantando, chorando ou rindo,
depende só de quem ouve;
foi inventada, não houve;
Não vai enganar ninguém,
pois não trata de mal
e nem de bem;
é de deixar correr livre,
sem peias e sem cercados,
os sonhos que a gente vive,
em tempos tão mal parados.
O campo
Nos largos campos gerais
de Minas, do Mato Grosso,
de São Paulo, de Goiás,
Catarina e Paraná,
Rio Grande, grande ou mais,
existe uma paz contida,
que passa do campo ao gado
e do gado vem pra gente;
quase em paz a gente fica;
e estando a gente no campo,
em vez de desesperado,
mais ele pacifica.
Cercados na mesma terra,
o boi muge, o povo canta,
e na paz desses gerais,
nem uma mosca se espanta.
É belo, é belo, não nego.
A boiada
Há quietude nos campos e nos homens;
Nos campos porque são largos;
tão largos que em vão consomem
todos os caminhos por abrir,
todos os passos, laços e abraços,
meios e anseios dos homens;
nos homens porque são fracos;
não por vontade, por marcos
há muito no chão plantados,
de interesses velados;
velados mas fortes;
fortes e bem fincados
como a paz contada em versos,
nas léguas dos mil impressos,
feitos para consumo geral.
Mas um dia,
a quietude geral
dos campos gerais, foi quebrada:
que até hoje é procurado,
e nunca foi encontrado
e nem será,
no verde mais amplo do campo,
deu partida;
feriu mais fundo a ferida
de uma rês que era o cabeça,
a segurança e o guia
da mais tranquila boiada
que naquele tempo havia.
Toda paz foi alterada
pela dor mal comportada
da boiada
desfileirada,
estourada.
O caipira
Mas os campos gerais
são largos
e, por igual, consomem
o fraco anseio do homem
e, do gado, a disparada.
A quietude sempre volta
e voltou.
Encontrou uma figura quase humana
que de humana parecia
só chapéu, laço, as esporas
e o lugar na montaria,
do vaqueiro do outro dia.
A busca do gado solto,
a sela lembrando o morto,
a poeira ainda no corpo,
sua vida de trabalho,
chamada vida vadia,
no mesmo impresso
em que antes, calma
era poesia,
cercam, segam, como ao gado,
sitiado num quadrado de aveloz,
sua fé, sua alegria.
Caipira, feito peão,
olha de frente o sertão.
Olha o gado, olha o cercado,
sente a própria solidão.
Olha de perto o cavalo,
e quanto mais perto certa,
a nova e clara visão:
o cavalo é sempre o mesmo,
a sela também, e o gibão;
quem muda sempre é o vaqueiro,
por qualquer jeito e razão;
se estoura a boiada
foge, ou morre,
não tem perdão.
Jeca por impaludismo,
caipira por tradição,
tabaréu por anedota,
matuto por servidão,
dá-se contas, de repente,
que também pode ser gente;
toma o cavalo nos freios;
é seu, de forças e arreios;
porque nele está montado
e por ele é bem usado;
e mais:
não tem dono o sertão.
Grita alto e sem temores,
virei gente, meus senhores,
pra morrer morro por mim
e por minha condição.
Na mente tenho somente,
uma fé e uma razão:
Libertar todo este campo,
correndo todo sertão;
numa mão, laço e chicote,
na outra, os marcos do chão.
*****
CONFISSÃO
Toma este canto,
companheiro;
e em teus ombros,
em teus braços,
e em teu peito,
no teu exato jeito,
prossegue e dá sentido
ao canto com teu feito.
Eu mais não pude que cantar;
e não basta companheiro, o canto
e o só sonhar.
Por isso, tanto,
eu te confesso e me garanto:
se não fossem os teus ombros
e os teus braços e o teu peito
e o poder que só tu tens de transformar,
eu não havia de cantar.
*****
OLHA DE FRENTE O SERTÃO
Jesuíno de Maria
lá da serra do Capão,
morreu, ao romper do dia,
de tocaia e traição;
e o matador nem sabia,
do que fazia, a razão;
no feito foi só mandado,
no fubá, mão de pilão.
*****
REFLEXÃO
Posso internar-me
singularmente,
nos mistérios
de uma solidão
que compete,
exclusivamente,
a cada um em separado.
Porém, decididamente não quero
e aí está,
o motivo claro
do poema inverso
que vivo a escrever,
e que me dáamparo
pra poder dizer
que o eu
não existe sem você.
*****
AOS QUE VÃO COMIGO E COM
QUEM VOU FICAR
Vou-me embora, agora,
e se eu não voltar
não deixem tristeza
tomar meu lugar;
que no mundo, afora,
sempre vou lembrar,
daqui, desta hora,
quando eu cantar.
E se os amigos que aqui vão ficar,
quiserem, mesmo, e de mim precisar,
guardem desde agora, o que eu posso dar.
Preservem consigo o que eu vou levar;
este amor, antigo, que eu pude encontrar;
que vocês mantinham sem saber negar.
E aos muitos amigos que aqui vão chegar
procurando abrigo pra continuar,
digam, sem temores, depois de ajudar,
que um pouco adiante, em qualquer lugar,
tem calor da gente e amor a esperar
que eu levei bastante pra sempre plantar.