Carlos Moreira é poeta paraibano de João Pessoa e reside em Porto Velho(RO). Publicou diversos livros de poemas, entre eles Tetralogia do nada, Cardume e Corpo aberto.
nasci em joão: pessoa: da pessoa
que joão plantou em maria: da flor
de maria: nunca encontrei joão
mas o vejo mais a cada hora no espelho
dágua quando raia o dia: nos olhos
da noite quando a noite luz: ainda
estamos aqui: distantes no tempo
e nas águas: tão perto dos olhos
tão vivos nos fios dos filhos e filhas
que seguem tecendo suas redes
de luz: há de me pescar um dia
qualquer hora dessas nesse relógio
que a si mesmo devorou: há de me saber
que seu nome nem o meu importam:
só lances de dados contra o silêncio:
joões marias pessoas que tentam ser
enquanto o tempo segue apenas sendo
*****
primeira lição para estripar um homem:
estripa-se
o seu nome em praça suja
sua língua
na lama sua sombra na sombra
em cada
passo um golpe de medo
e no
segredo que nunca houve
as larvas
de milhões de segredos
segunda
lição para estripar um homem:
para saber
sua altura usar a régua do porco
a régua do
rato a métrica do nojo
a balança
do fogo: cada quilo valerá
menos que o
outro e cada centímetro
um corpo a
menos: a menos que o corpo
se jogue da
ponte ou do porto
e poupe o
inútil trabalho da vila
de matar um
homem morto
terceira
lição para estripar um homem:
não se
estripa um homem só:
estripam-se
os avós e netos
amigos
silêncios e objetos
que cercam
o homem a ser estripado
e tudo
deverá caber no mesmo saco
um mundo
inteiro reduzido
ao suposto
fato de que tudo
retornará
ao nada de que foi originado
quarta
lição para estripar um homem:
estripa-se
a palavra do homem
o dito o
não dito o interdito
naquilo que
sendo fala também cala
o que o
torna homem: sua palavra
de homem
que agora estripada
vale nada
ou menos o que a pele
diria à
faca: bem-vinda, senhora
sinta-se em
casa
quinta
lição para estripar um homem:
após
estripado lança-se tudo
no fosso do
fundo do calabouço
entre
outros tantos estripados
carcaças de
sonhos pedaços de loucos
para que
até o fim dos tempos
de nenhum
corredor possa brotar
o vivo
reflexo de seus olhos
sexta lição
para estripar um homem:
a vila
inteira deverá lavar a praça
as ruas as
casas as igrejas as estradas
e a própria
vila deverá mergulhar
e manchar o
rio com o vermelho
que
escorrer de suas roupas pálidas
e
queimá-las numa fogueira imensa
e
caminharem nus e em silêncio
cada um em
direção à cova de sua casa
última
lição para estripar um homem:
verificar
com exato cuidado
se a baleia
não quer vomitá-lo
se não
possui uma flauta de pedra
ou uma
antiga lira afiada
que faça
arrepiar a terra:
neste caso
foi inútil estripá-lo:
multiplicado
milpartido libertado
ele rompe a
corrente do tempo
e atinge
maior o outro lado:
inútil o
sono da vila enquanto
canta o
estripado
*****
jack e eu
nos damos razoavelmente bem:
o
suficiente para não nos matarmos:
difíceis
são as noites porque jack reza muito
e seu
arrependimento aparentemente sincero
inunda o
chão: é preciso levantar
no meio da
noite e molhar os pés
nos pedidos
de perdão de jack: há muitas vidas
em sua vida
na vida de sua navalha de aço
no gume de
seu bisturi sedento:
jack reza e
geme e se arrepende
com
aparente sinceridade: penso se algum dia
ele secará
se ele transbordará até
a última
gota se tudo de repente sairá dele
por simples
cansaço desidratação da culpa
ou perdão
de algum deus impaciente
que diga:
chega jack: deixe os outros
dormirem em
paz deixe de inundar o chão
na
madrugada deixe os mortos em paz
não os faça
flutuar na barca furada
do teu
pedido de perdão: a canoa do perdão
também
naufraga no cotidiano: talvez então
jack se
cale e nos deixe dormir em paz
sem a
umidade debaixo da cama
e não como
fetos que acordam cobertos
de musgo e sangue
e água: mas no fundo
duvido que
essa noite chegará: são muito sujas
as duas
mãos de jack seu abdômen de inseto
seu olhar
que pouco pisca: eu e ele
nos damos
razoavelmente bem: mas não
o
suficiente para que minha navalha
não durma
embaixo do meu travesseiro
a um toque
da minha mão esquerda
*****
o enterrado
vivo está vivo: o sol
não
percebeu sua falta: a noite chega
sem aviso e
deita noite sobre a noite
do
enterrado vivo: é noite sempre
onde o
enterrado vivo está: é sempre
noite
quando o enterrado vivo é:
mesmo que
cave em todas direções
estará vivo
e enterrado: um tabuleiro de xadrez
nas paredes
e o calendário inútil: para quem
enviar
sinais de fumaça código morse cartas cifradas?
gastar seu
aramaico com os vermes para quê?
enterrado
vivo com seus livros para quê?
enterrado
vivo: maldito enterrado vivo:
cravo na
lapela flores ao redor a sombra acesa
de uma
aliança: tudo vivo e enterrado
com o
enterrado vivo: ele ainda é livre
para
cantar: a música reverbera nas paredes
e no
terceiro acorde já é outra música:
as palavras
ricocheteando nos cantos:
fonemas
bêbados se abraçando no ar
em busca de
uma língua: os vermes
permanecem
fora à espreita da morte
do
enterrado vivo: reclamam da demora:
seus
pulmões reciclam o ar? seus olhos
escondiam
luz em que retina falsa?
os dias
passam e os vermes esperam:
chove e os
vermes esperam: é triste
a vida dos
vermes: esperar a morte incerta
do
enterrado vivo: o enterrado vivo vive:
vai
libertando aos poucos a memória aprisionada:
a luz atravessando
o quarto: a gargalhada
inundada de
maresia: as portas se abrindo
e ela
entrando vestida de sol: cães acompanhando
a volta
para casa e logo desaparecendo:
bolinhos
quentes de chuva brilhando entre
açúcar e
canela: a voz livre ecoando no teatro:
o cheiro de
uma mulher que se perdeu na multidão:
tudo vivo
no enterrado vivo: nem alucinação
nem febre:
só a pressão do ar nos tímpanos
que às
vezes atravessa o hipotálamo: a palavra
hipotálamo
e de repente o riso detonado
pelo falso
cognato: qual o diâmetro
do
hipotálamo de um hipopótamo? libélulas
têm
hipotálamo? elas conseguem ver seu reflexo
enquanto
colhem gotas? lesmas podem sofrer
de
labirintite? ouriços da polinésia que vivem
cento e
cinquenta anos têm memória da infância?
o enterrado
vivo ri: e ao saber que ri gargalha:
do lado de
fora os vermes o escutam gargalhar
e se
eriçam: devem ser gritos espasmos haustos
de
sufocamento ou um possível enforcamento
com a
gravata lilás: depois o silêncio: os que estão
mais
próximos avançam um pouco seus úmidos
passos de
verme: mas não: o chão ainda vibra
ainda há
calor na terra: amargurados
deitam-se
em círculo e esperam: maldito
enterrado
vivo: capaz que mesmo morto continue:
como saber
a hora de cavar salivar devorar?
haverá
corpo ou num último blefe o desgraçado
provoque
combustão espontânea? mumificação?
talvez se
confunda com as flores? talvez
salte
direto para o estado mineral: pedra
carvão
cobalto urânio radioativo: triste
e incerta a
vida dos vermes: no fundo
mais
profundo o enterrado vivo aflora:
nem
fogo-fátuo nem fluorescência de pétalas:
de alguma
forma o enterrado vivo aflora
e dança:
dança por dentro no centro onde
tudo
começa: e sem pressa respira e dorme
e acorda:
ontem sonhou que era uma trufa negra:
os cães da
antiga madrugada devem estar a caminho
Fonte:
Biblioteca Pública do Paraná e Facebook
Fantástico autor, descoberto hoje. Grata
ResponderExcluir