quinta-feira, 30 de março de 2023

Natália Luna

Natália Luna (João Pessoa-PB, 1990). Formada em Filosofia pela Unicamp e autora do livro de poesia Íntimo Exílio pela ed. Urutau (2019). Está na produção de seu segundo livro, Rumina. Já publicou poemas pela Revista Textou, Mapa Brava e participa da Antologia “Um Brasil ainda em chamas”, pela ed. Contracapa, 2022.




AFRODISÍACO

 

Quem dirá, enfim, de nosso elixir, de nosso maracujá,
quando na cama:
a tarja branca, ao lado, para trás, na cabeceira.

Quem dirá de nós, que fomos quando seguimos,
na repartição feito o azedume, aquele, que para mim
foi claro, como um porre, um drink, no sofá:

Quem dirá? De mim, de ti, do enxame?
– Mas logo esses, juntos?
A partição dos nós, ou melhor seria dizer

A nós no vela, ao nos levar, em merecidas amarras
quando descemos à língua por bem amar?

Rosa Púrpura do Cairo, não caia, feito gigante,
nesses novelos, sem essa.
Talvez fosse assim que dirias;
eu, apressando o passo, desarticulada, sem jeito:

Na alvenaria me pretendia, feito sujeito.
– A imagem que você criou de mim não me corteja.




*****


ERA UMA VEZ

Era uma vez um aludir, um iludir e um explanar
Era uma vez um fim de tarde
Era uma vez um ir e vir a qualquer parte

Estar à deriva
Estar de passant
Estar de solilóquio
E partir quando se metia num invólucro
Nada muito concreto palpável sólido

Era uma vez
De muitas vezes e nuncares
A liberdade foi a sobra
E que não nos reste mais que isto
No prato de contar migalhas
Para o desejo que era só amplidão

Era uma vez
Menino na ponta dos dedos, faceiro menino na beira do âmago
Era uma vez
Menina no rodopio da saia até sangrar
o joelho mal se apercebendo do véu da manhã

Cheios de pérolas e anos
Cerca de sobra
Sentido por um fio
E silêncio por contar,
depois de encerrar um ciclo.




*****



LIGAÇÃO A COBRAR


Nós não precisamos nos esquecer

De que a comunicação é falha

De que a voz gagueja sem ar

De que o sopro é um assovio

De que o titubear é um sentimento

De que já temos lombar para reclamar

De que o cavalo impulsiona a montaria

De que o amor é um bolero sem gaivotas num filme pertinente

De que os vizinhos observam tudo onde não cabe ciência,

inclusive se o bar estiver fechado

De que o engasgar é a interrupção de uma mulher que foi silenciada,

antes que nos déssemos por conta

De que a sala é maior só quando cabem dois

De que o sofá pode ser no chão e não vir à prestação,

assim como o colchão e os papéis pardos

De que o mar é revolto quando ancora na orla

De que a infância nos percorre os dedos em lágrimas

e forma poças d’água na palma da mão quando não deságuam,

conduzindo o movimento lento

De que a beleza do bê-a-bá não se encerra em sua caligrafia.


 

 

Moama Marques

 Moama Marques nasceu em Pombal-Pb e reside em João Pessoa-Pb. É professora de Literatura e Língua Portuguesa na UFPB. "Bem-vindos os bárbaros é o seu primeiro livro de poemas. Colabora com revistas e portais de literatura.




A CAIXA DE FÓSFOROS


A história do corpo
(do nosso corpo)
começa com a caça
ao fogo

A história do fogo
(a que conhecemos)
se faz de pequenos
incêndios




*****



ESFINGE


O fio que faz do enigma
novelo
é o mesmo
que faz
a curiosidade do gato?




*****




SANGRIA

A memória do meu pai tem cheiro da chuva
chegando no sertão.

Não demora, e tudo é infância.

A alegria, um rio
navegável
ao meio-
fio




*****




BLACKBIRD


Um passarinho
pousou
na minha sorte

Todo dia
ele me assovia
uma canção de bem viver




*****





MÁTRIA


Tudo que nela plantava
vingava
espécies raras de flores
vermelhos frutos
de uma cor indócil
entre a páprica doce
perfumando a carne crua
e a textura da pele
tostada pelo urucum


Carlos Alberto Jales

 Carlos Alberto Jales Costa nasceue em Natal-RN e reside em João Pessoa-Pb. Formado em Filosofia e Direito, lecionou em várias instituições de ensino superior, entre as quais a Universidade Federal da Paraíba e a Universidade Católica de Pernambuco. Já publicou diversos livros nas áreas de educação e poesia. Vindimas da Solidão (poesia) e o mais recente.




O POEMA ETERNIZA O INSTANTE

O poema eterniza o instante: luzes na madrugada, canto órfico dos pássaros, vozes dispersas que não se encontram. O poema eterniza o instante: e se recolhe a velhos mosteiros à espera de rituais de silêncio.



*****



AGORA QUE NÃO ESCUTO MAIS AS VOZES DE OUTRORA


Agora que não escuto mais
as vozes de outrora me
mostrando caminhos.

Agora que lilases
murcham so olhar
paciente dos jardineiros

Agora que os relâmpagos
não iluminam mais minha
lucidez

Agora que as tardes dispersas
ficam surdas à música dos
realejos.

Agora que do cio do chão
não brotam mais palavras
e lágrimas.

Agora que as ancas do tempo
nos apontam dias de ira.

Agora que os homens se perdem
entre rochas e vegetais, um barco
clandestino me espera e me leva
entre promessas e ventanias aos
arredores de um mar subjugado.



*****



EM TUDO O HOMEM PROCURA


Em tudo o homem procura:
a devoção,
a oração
a ilusão

Em tudo o homem vislumbra:
os ermos
os termos
os cerros

Em tudo o homem deseja:
as armas
as almas
as falas

Em tudo o homem descobre:
o posto
o rosto
o desgosto.

Em tudo o homem multiplica:
o nexo
o sexo
o amplexo.

Em tudo o homem constrói;
a utopia
a travessia
a agonia.

Em tudo o homem:
procura
vislumbra
deseja
descobre
multiplica
constrói.

Mas só encontra,
nos campos
da memória
a carne fraturada e
a solidão dos dias.



*****



 

TEMPO

 

Na vaga memória
do tempo, a noite
flutua. 

Escuto passos, mas
não distingo os sons. 

Imagino cansados
Viajantes chegando,
mas não sei de onde,

nem que caminhos
seguem com seus
crestados pés.

 Os mortos, discretos
como sempre, inventam
canções que ferem
o sigilo das águas. 

Na vaga memória do
tempo, a insônia
caminha com a solidão,
traçando o latejar
dos dias.



quarta-feira, 29 de março de 2023

Zé da Luz

Severino de Andrade Silva (1904-1965) nasceu em Itabaiana-PB e ficou conhecido como poeta Zé da Luz. Foi um alfaiate de profissão e poeta popular brasileiro. Faleceu no Rio de Janeiro.





A CACIMBA

Tá vendo aquela cacimba
Lá na bêra do riacho,
Im riba da ribancêra,
Qui fica, assim, pru dibaxo
De um pé de tamarinêra?

Pois, um magote de môça
Quage toda menhanzinha,
Foima, assim, aquela tuia,
Na bêra da cacimbinha
Tomando banho de cuia!

Eu não sei pru quê razão,
As águas dessa nacente,
As águas qui alí se vê,
Tem um gosto deferente
Das cacimba de bêbê…

As águas da cacimbinha
Tem um gôsto mais mió.
Nem sargada, nem insôça…
Tem um gostim do suó
Dos suvaco déssas môça…

Quando eu vejo essa cacimba,
Qui inspio a minha cara
E a cara torno a inspiá,
Naquelas águas quilara,
Pego logo a desejá…

…Desejo, pra que negá?
Desejo ser um caçote,
Cum dois óio desse tamanho!
Pra vê, aquele magóte
De môça tumando banho!

 

 

*****

 

BRASI CABOCO

O qui é Brasí Caboco?
É um Brasi diferente
do Brasí das capitá.
É um Brasi brasilêro,
sem mistura de instrangero,
um Brasi nacioná!

É o Brasi qui não veste
liforme de gazimira,
camisa de peito duro,
com butuadura de ouro…
Brasi caboco só veste,
camisa grossa de lista,
carça de brim da “polista”
gibão e chapéu de coro!

Brasi caboco num come
assentado nos banquete,
misturado cum os home
de casaca e anelão…
Brasi caboco só come
o bode seco, o feijão,
e as veiz uma panelada,
um pirão de carne verde,
nos dias da inleição
quando vai servi de iscada
prus home de posição.

Brasi caboco num sabe
falá ingrês nem francês,
munto meno o português
qui os outros fala imprestado…
Brasi caboco num inscreve;
munto má assina o nome
pra votar pru mode os home
Sê gunverno e diputado
Mas porém. Brasi caboco,
é um Brasi brasileiro,
sem mistura de instrangero
Um Brasi nacioná!

É o Brasi sertanejo
dos coco, das imbolada,
dos samba, dos vialejo,
zabumba e caracaxá!
É o Brasi das vaquejada,
do aboio dos vaquero,
do arranco das boiada
nos fechado ou tabulero!
É o Brasi das caboca
qui tem os óio feiticero,
qui tem a boca incarnada,
como fruta de cardoro
quando ela nasce alejada!

É o Brasi das promessa
nas noite de São João!
dos carro de boi cantano
pela boca dos cocão.

É o Brasi das caboca
qui cum sabença gunverna,
vinte e cinco pá-de-birro
cum a munfada entre as perna!
Brasi das briga de galo!
do jogo de “sôco-tôco”!
É o Brasi dos caboco
amansadô de cavalo!

É o Brasi dos cantadô,
desses caboco afamado,
qui nos verso improvisado,
sirrindo, cantáro o amô;
cantando choraro as mágua:
Brasi de Pelino Guedes,
de Inácio da Catingueira,
de Umbelino do Texera
e Romano de Mãe-d’água!

É o Brasi das caboca,
qui de noite se dibruça,
machucando o peito virge
no batente das jinela…
Vendo, os caboco pachola
qui geme, chora e soluça
nas cordas de uma viola,
ruendo paxão pru ela!

É esse o Brasi caboco.
Um Brasi bem brasilero,
sem mistura de instrangêro
Um Brasi nacioná!
Brasi, qui foi, eu tô certo
argum dia discuberto,
pru Pêdo Arves Cabrá.



*****

 

As Flô de Puxianã

 

Três muié ou três irmã,
três cachôrra da mulesta,
eu vi num dia de festa,
no lugar Puxinanã.

A mais véia, a mais ribusta
era mermo uma tentação!
mimosa flô do sertão
que o povo chamava Ogusta.

A segunda, a Guléimina,
tinha uns ói qui ô! mardição!
Matava quarqué critão
os oiá déssa minina.

Os ói dela paricia
duas istrêla tremendo,
se apagando e se acendendo
em noite de ventania.

A tercêra, era Maroca.
Cum um cóipo muito má feito.
Mas porém, tinha nos peito
dois cuscús de mandioca.

 

 

Marcos dos Anjos

Marcos Pereira dos Anjos nasceu em João Pessoa. Com “Alguns Gestos”, lançado em 1963, deu início ao Grupo Sanhauá, cuja maior preocupação foi tirar o escritor provinciano do ineditismo e que estava relegado. A seguir, editou “Canto Cão”, de Anco Márcio; “O Ataque”, de Antônio Serafim; “Linha de Limite” de Emmanuel Ponce de Leon Jr e, além de outros livros, a revista “Couro”, todos essencialmente artesanais e mimeografados, características ao Grupo Sanhauá.

 

 


 

ALGUNS GESTOS
(1962-1963)

 

Do
surgir-se
sentir-se
sumir-se

a b e r t u r a

o amor é barco
onde aportam distâncias


surge da verticalidade
     — este gesto

seu caminho é o barco
     — este momento
sua distância repousará
     — este silêncio


as cores
o tempo
o homem

— por que não inventamos
   um outro dia?


no amor
o homem é gesto
que silencia

— é acidental sua crueldade

o homem
só distâncias
só silêncio de se ir

— a ilusão de se estar


logo há de surgir
uma manhã de silêncio
para a edificação do homem


ao sentir-se
aspira o esquecer-se
e côncavo o pensar

— não há nada de essencial
    no existir


suas mãos fluem
        — murmúrios

— evocam-se silêncios
repetem-se-lhe os gestos
     caminha o ser

final

na limitação
flutua
a serenidade do ser

— o aniquilar-se

 

 

*****

 

 

OUTROS GESTOS DE EXISTIR-SE

 

o braço
nunca pesa
na terra
que se planta


- o braço espera
   toda vez que gera

busca o braço
onde
o rude pranto
reza

outros braços
onde silêncios
chuvas-sêmen
à terra cantam

 

um braço
se ergue

- o braço
   fixo-horizonte
   à boca alimento

 

o homem no pranto
o homem no canto
o homem no amor

 

o homem na terra
- a terra do homem
  o homem no homem
- escravo do homem

 

a terra é o homem
- sua liberdade
- seu pranto
- seu canto
- seu amor

 

se fosse esse rio
se fosse essa rua
se fosse essa casa

 

é simplesmente um homem
que é também viaduto

em si  fluem cidades
condensam-se postes
reflete-lhe os bondes
espia-lhe os anúncios

nu risonho
é simplesmente um homem
sozinho na ponte


Lau Siqueira

 Lau Siqueira nasceu em Jaguarão-RS e reside na Paraíba desde 1985. Publicou alguns livros de poemas, a exemplo de "O guardador de Sorrisos", "A memória é uma espécie de cravo ferrando a estranheza das coisas", "O inventário do pêssego",  "Cabeça de Medusa, entre outros. Participou de algumas antologias e coletâneas, entre elas "Na virada do século - poesia de invenção no Brasil", organizada por Frederico Barbosa e Cláudio Daniel. O álbum "Quarta Capa", gravado por Dida Vieira, reúne poemas de Lau musicados por Paulo Ró. Sua poesia está nas redes sociais, sites e revistas.



TAPERA


O tempo é uma casa
desabitada e esquecida
no meio da estrada.

Quem passou por ela
e viu apenas uma
casa, na verdade não

viu nada.



*****



DISTOPIA


não me iludo

há um escuro
permanente

e uma sombra
iluminando
tudo




*****



TRAVESSIA


Quando soltei
os camelos, já não
havia deserto.

Nenhuma manhã
nascendo.

Nenhuma lua
por perto.



*****



SERTÃNICA


metade era
soco

outra metade
sopro

e tudo era tanto
pro meu coração
tão pouco



*****



PARADIGMA


a vida
é um eterno
ir-se embora

costura de
instantes diluídos
na eternidade

tempo
de retornos
irreparáveis

e encontros
irreconciliáveis




*****



viver é delicado
argumento de samba
sentimento de fado

terça-feira, 28 de março de 2023

Dione Barreto

 Dione Barreto. É poeta, ex-dirigente cultural e Psicóloga Clínica. Paraibana de Campina Grande, atuou na vida cultural do Recife de 1977 a 2019. Foi presidente da UBE/PE, do Conselho de Cultura do Recife e Diretora de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco, realizando parcerias com instituições de cultura dos nove estados do Nordeste do Brasil, além de Portugal, Galícia e os sete países de língua portuguesa (Projetos CumpliCidades/Prêmio da APCA/SP, Cenalusófona e NordesteS/em parceria com o Sesc Pompeia).

PUBLICOU (poesia): A Noite em que Prolongamos o Sol, Editora Primata, S.Paulo:2023;   Desiguais, Ed. 20-20, Recife, 1994; Do Amor  e suas Perversidades, CEPE, Recife, 1989 (Prêmio Mauro Mota de Poesia/MH); Feitiço do Silêncio, Ed. Autor,  Recife, 1984;rculo Vazio, Ed. Autor, C.Grande, 1973.   INTEGROU uma dezena de antologias de poesia, entre elas: Pernambuco, Terra da Poesia, org. Antônio Campos e Cláudia Cordeiro, ed. IMC/Escrituras, Recife, 2005;  Retratos – A poesia feminina Contemporânea em Pernambuco, org. Eizabeth Angélica Santos Siqueira, Ed. Bagaço/Unicap, Recife, 2004;  e Poetes du Bresil, Aperçu. Realize et Sélection par Lourdes Sarmento. Editions VERECUETOS, Chemins scabreux, revue littéraire, espanhol/franças. Editoria de Paris. Septembre; Foice na Carne, S.Paulo, Alpharrabio Edições/USCS/Instituto Ideia: 2021.

TAMBÉM integra o Dicionário Biobibliográfico de Poetas Pernambucanos, org. Lamartine Morais, Fundarpe, 1993; e o Dicionário Literário da Paraíba, org. Idelette Muzart Fonseca dos Santos. Fundação Casa de Jose Américo/UFPB, 1993. 



OS SOBREVIVENTES


observo cuidadosamente
a mosca que se debate dentro da garrafa de cerveja

admiro seu esforço
mas não tenho pressa com a liberdade
estou ocupada em digerir
os quatro dedos do líquido perdido
e há, sem dúvida,
algum prazer naquela imobilidade

a miséria guarda
seu parentesco estético com a crueldade

 


*****  

 

POEMINHA DE NINGUÉM


: preciso escrever uma carta de amor
mas antes
preciso inventar o amor
pior:
convencer-me

 Do livro DESIGUAIS, Recife, 20-20 Comuinicação e Editora: 1994.



*****

 

DE AMOR MULTIPLICADO
A Fernando Pessoa


se a dor do amor reflete a dor do nada
a dor de alguém no amor multiplicado
somente a dor que se assemelha ao fado
apaga a chama que esse amor maltrata

afora a dor o amor enfim projeta
o drama-em-gente que do espelho fala
o amor na dor de um coração que cala
é deus vencido que dos olhos peca

qual seja a dor o amor decerto livra
a dor antiga do castigo-em-gente
o amor projeta a multidão ausente
e a dor na dor deságua quando pedra

só pela dor o amor marca seu plano
e o tempo nega a dor que quando exata
retira d´alma a mesma dor que mata
e tudo que enlouquece ano após ano

a pedra bruta marca a resistência
e a mesma pedra em outra se transforma
que por ser dupla quer a frágil rocha
trazer o amor a cada nova ausência

Do livro DO AMOR E SUAS PERVERSIDADES, Recife, CEPE/FUNDARPE: 1989. Prêmio Mauro Mota de Poesia/MH.



 *****



A VIDA É METRO


minha mãe marcava o crescer dos oito filhos
desenhando uma escala na parede
- para aprender a cuidar de si, dizia

desde aí, tenho urgências
e faço a vida acordando,
como se morresse

a vida é metro
metragem curtíssima

 

 

***** 

 

 

AMOR DESPERTO


o amor não desperta
ama quem amanhece de amor, primeiro


Do Livro A NOITE EM QUE PROLONGAMOS O SOL, Editora Primata, S. Paulo:2023


 

*****

 

INUTIDÃO


tenho tempo e aprego versos
numa superfície sem solidez.

carrego comigo duas paredes de ventania
e quando avistar os desmamados de nós
arrancaremos bandeiras
e tocaremos, de assobio, a lírica do silêncio
em honra aos corpos estendidos
ao rés de quem arrasta a inutidão

Foice na Carne, S.Paulo, Alpharrabio Edições/USCS/Instituto Ideia: 2021.



***** 



SEXO: FEMININO


eu sou mulher
antiga besta de um aborto mal feito
tirada da costela de adão
por pura ilusão
e se não me falha a memória
como poderia eu estar na história
se o deus que me pariu não era fértil?

eu sou mulher
antiga besta de um aborto mal feito
vim do século zero
gerei o cristo, filho de são josé
e fui uma madalena
aquela tida por puta
e como não?
se jesus também era filho de deus.

eu sou mulher
antiga besta de um aborto mal feito
soberba distração de uma tríade
que se reproduziu de  si mesma
e se designou: pai, filho e espírito santo.

eu sou mulher
e sou
simbologia e mentira histórica.

Do livro FEITIÇO DO SILÊNCIO, Recife, Edição da autora:1984.

 

Raymundo Asfora

 

Raymundo Asfora (1930-1987), nasceu em Fortaleza-CE e foi morar  em Campina Grande-Pb ainda menino. Foi poeta, tribuno e Professor de Direito Penal na Faculdade de Direito da Fundação Regional do Nordeste (atual Universidade Estadual da Paraíba).





CHAPÉU PRETO

Era preto, tão preto como preto
Foi seu destino de findar ao léu...
E, sendo preto assim o meu chapéu,
Faço-lhe preto todo este soneto.

Preto um quarteto como outro quarteto,
E como o preto deste preto véu
De mistério que oculta o meu chapéu
Preto farei, também, o seu terceto.

Preto e mais preto do que o próprio preto!
Preto e tão preto quanto este soneto
Ou como o preto de um brumoso céu...

Com o meu preto chapéu me comprometo,
A nunca mais usar um chapéu preto,
Preto, tão preto como o meu chapéu.




*****



ÚLTIMO ADEUS


Tenho bem viva, na lembrança, aquela
tarde estival do derradeiro adeus,
o sol poente, com frágil vela,
cedia à noite as amplidões dos céus.

Pálida e triste, mas de face bela,
tendo o crepúsculo nos olhares seus,
por entre as brumas da distância, ela,
partiu saudosa entre um saudoso adeus.

E, a relembrá-la, estou no meu caminho,
arquitetando, em sonho, o nosso ninho
na frondosa palmeira da ilusão.

Mas ela, ingrata, não voltou mais nunca...
E o pesadelo que o meu sonho trunca,
É atroz ironia da desilusão.



*****





TROPEIROS DA BORBOREMA



Estala relho marvado
Recordar hoje é meu tema
Quero é rever os antigos tropeiros da Borborema

São tropas de burros que vêm do sertão
Trazendo seus fardos de pele e algodão
O passo moroso só a fome galopa
Pois tudo atropela os passos da tropa
O duro chicote cortando seus lombos
Os cascos feridos nas pedras aos tompos
A sede e a poeira o sol que desaba
Rolando caminho que nunca se acaba

Estala relho marvado
Recordar hoje é meu tema
Quero é rever os antigos tropeiros da Borborema

Assim caminhavam as tropas cansadas
E os bravos tropeiros buscando pousada
Nos ranchos e aguadas dos tempos de outrora
Saindo mais cedo que a barra da aurora
Riqueza da terra que tanto se expande
E se hoje se chama de Campina Grande
Foi grande por eles que foram os primeiros
Ó tropas de burros, ó velhos tropeiros.

Forró em Campina

Composição: Jackson do Pandeiro

Cantando meu forró vem à lembrança
O meu tempo de criança que me faz chorar.

Ó linda flor, linda morena
Campina Grande, minha Borborema.

Me lembro de Maria Pororoca
De Josefa Triburtino, e de Carminha Vilar.

Bodocongó, Alto Branco e Zé Pinheiro
Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá.

Walter Galvão

 Walter Galvão (1956/2021) nasceu em João Pessoa, jornalista, poeta, músico. É autor de diversos livros, tem poemas musicados e gravados por Didier Guigue, Eleonora Falcone, Paulo Ró. Os poemas abaixo estão no livro Silabário.




CIRCULANDO


Eu ouço o som da injustiça
ouço o som da injustiça
som da injustiça
som da
som
da injustiça
ouço o som
da
injustiça
eu ouço o som da injustiça.




*****



FOTOGRAMÁTICA (à media luz)



A língua alma
no espelho
é reza calma
em vermelho

Clichê neon
asa e som
estribo língua
no cheio.



*****



CLARIDEZ


Lá fora
a tarde estremece
anseio em prata.
Agora
mesmo feito sal
ouso olhar além
a querer mais.



*****


4 - DO SENTIDO EFÊMERO DAS FRONTEIRAS

O relógio martela
na sala
tatuado na parede.
Exibe sua lógica
língua sobre a pele
do tempo.
O relógio
emboscado na parede
é céu aberto
pupila dilatada
que me olha
por dentro.



*****


ABSTINÊNCIA


Da mulher jaguar, guardo garras do meu corpo.

Feridas sangram as causas da falta.

A ausência soa a dor.

Sirene, mandala,
sereia da mata,
estou sem ti.





Iviny

 Iviny (1998) é natural de Campina Grande-Pb, onde reside. É idealizadora e produtora de conteúdo do Instagram literário @pluralizar.te, espaço em que publica suas urgências poéticas. Autora do livro “Orgasmos da Alma", participou em 2021 da Coleção Desaguamentos (vol. I) e em 2022 do livro Prosas de Oficina (vol. II), volumes publicados pela Editora Escaleras. Graduada em Letras - Língua Portuguesa (UFCG) e especializando em Escrita Criativa, Multiplataformas e Roteiro (NOVOESTE), atua no ensino básico como professora de redação e Literatura.







TESOURA

 

Eu beijo a boca da inspiração,
A sua língua me invade por inteira,
Corta meus canais e surge, a certeira
Serpente da intrínseca movimentação.

Performatizo tua falsa ficção,
Mas logo encaixo o pensamento: víbora que delira
Na folha em branco, nos lençóis... Mira
Nos papéis, ora nos cortamos ao meio, ora somos junção.

No ato, as úmidas se misturam,
Traçamos a lápis o movimento,
Surge o verso, a mistura dos gozos em rebento.

E assim, nos desfragmentamos, Outros virão,
Mas ali no separar das babas, evento
Dos âmagos ávidos, nasce nojento o poema sedento.

 


 *****




BUSCAR NÃO É VERBO II


Hoje eu acordei sobressaltada.
Nos meus sonhos era o teu aniversário.
Lembrei do teu olhar quando chegava o fim da viagem,
Peito recluso. Queria que eu ficasse,
Silenciosamente.
O gosto da comida mudava,
O cheiro do ambiente era clamor,
A madrugada antes da partida: impossível!
Confere: chaves, carteira, protetor solar que estava no banheiro.
Ai, ai...
Escondi um monte de sorrisos entre as tuas roupas.
Na parede de recados deixei um beijo borrado de batom.
Parti.
Parti como uma música de brega.



*****


AOS QUE SÃO DA NOITE…

 

Quando se fala nas palavras
Aí sim, eu tomo rumo!
Porque elas passeiam nas linhas e entrelinhas
Mas precisam ter e ser voz,
Simultaneamente gritar silêncios
de escuridão ou aquarela.
E ainda assim não se perdem,
vagam por aí explicando
o que os homens não conseguem.
Comunicando semelhanças,
invadindo ambientes, articulando culturas,
Ajudando os poetas a construírem versos
que os tornam prisioneiros
amantes da vida,
companheiros das formas de amar.
Eu quero das palavras a essência
Para que nelas eu seja uma puta poeta
E dedique meus versos aos que são da noite.




*****



DESATENTO

 

Às 7,
Procuro em
alguma maleta
Um sorriso que caiba neste dia.
Visto-o,
Saio sorrindo de cara e
Morrendo de vida.




 *****





EGOCÊNTRICO É O ESTÔMAGO

 

Eu, burro, inerte ao meio dia.
Descarregando a areia reclamava de dor nas costas
E eu, digo o quê?
Chega a mulher com as mãos idênticas aos meu cascos,
perguntando o que dar de comer aos meninos.
E eu, como o quê?

 




*****





MÉNAGE VIOLENTO

 

Fiz ménage com o ódio e o nojo

( :do presidente,

dos antirracistas [só] de rede social,

da fila do desemprego,

da positividade utópica)

Fiz à trois porque só a desesperança não basta

Os antônimos mostram sua força na linha de frente

Só acreditar não basta

é preciso incômodo

( :em você, no mundo).

 

Cris Estevão

 Cris Estevão nasceu em João Pessoa onde ainda vive. Formada em Letras pela UFPB, e arte-educadora, professora e poeta. Particupou de algumas antologias, a exemplo de 100 poemas 100 poetas, Nós da Poeais e da Imersõ Latino-Americana. É autora de Morrerá em cada esquina do teu corpo uma pessoa só.




RESPIRAR


No ar
Raro feito
O mundo a parar
Eu giro
Ao Som da cor no peito
UM cinza crespo e profundo
Taquicardíaco
A língua cobre mais um remédio
As pernas dançam incoerentes
Enquanto os medos pulsam
delirantes
aqui dentro




*****



LIDO


A cada gota
sumo, ponta
Pressiono, não sinto
É instinto
Mas se é para ser extinto,
Rasga tudo por dentro
De longe, pressinto
que não há meio para sustentar
se só ficou suspense no ar




*****



TRANSLÚCIDA



Ela, transparente, incolor
Chuta a lata. Furta a cor
Vem sem rédea, a vapor
Põe as cartas, meio a meio

Sem comprar pão, nem dizer a que veio,
se falseio, anseio, passeio,
amola a faca com meu desejo.

Num ensejo
assumo, vejo:
Vem pra desconcertar o meu dia.



*****



FLEXÃO DE GÊNERO



O jeito que ela ria
Coloria as páginas
amarelas
de um tempo que ainda nem tinha passado
pra ela
meu riso
mordiscador de canto de boca
coloria sem ar
sem tempo pra ensaiar
pronome singular

Eu rio
Tu agoa
Nós, sequer havia
vós, já não se ouvia
Eles, navegar.




*****



OUTRA HISTÓRIA COMUM


A primeira vez que esqueci as chaves você ralhou comigo.
Na segunda sorriu como quem diz: "não tem jeito".
Da terceira vez, eu não levei as chaves.
Você respirou fundo.
Na quarta não pude subir.
Você jogou tudo pela janela.

Não houve outra vez.

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Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...