quinta-feira, 2 de março de 2023

Clotilde Tavares

 Clotilde Tavares nasceu em Campina Grande(Pb) e atualmente vive em Natal(RN). Escritora, dramaturga e pesquisadora, tem mais de trinta títulos publicados, entre livros, peças de teatro e folhetos de cordel. Tem forte presença nas redes sociais, sempre com temas culturais.

 


 

 

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Pouco preciso
para ser feliz:
um batom,
uma blusa negra e alguns colares.
Um livro de poemas
aberto em qualquer página.
Um elepê de Piazzola
na vitrola,
e a máxima distância
do eterno replay
dos bares de fim de semana.
O luxo de algumas atitudes insólitas
e um caderno como este
onde escrevo,
diariamente,
bilhetes de suicida.

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QUARENTA ANOS

para Allen Ginsberg

& eu
que uivei como um cão danado pelas esquinas da década de 60
& eu
que me encharquei de drogas & sexo & rock nos inferninhos da década de 70
& eu
que me banho de álcool & solidão nas páginas da década de 80
continuarei sendo aquela poetisa maldita meio beat meio louca
meio rock meio boba & tão necessária quanto uma garrafa vazia
de refrigerante ou um copo de papel usado?

continuarei derramando o meu sexo no asfalto das avenidas
ensopadas de sangue & vidros partidos?

continuarei dividindo o meu rosto nos retrovisores dos táxis
& xerocopiando o meu corpo em cada farmácia de esquina?
& se não tivesse feito tudo isso

& se não fizer tudo isso
vale a pena
ainda
estar viva?

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ZOOM

A bolsa, o traço de lápis,
os óculos e o sapato bicolor,
a aparência dos gestos.

A mão de unhas e dentes
e as frases escritas sem muita fé
na poeira das mesas.

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ITINERÁRIO DA SOLIDÃO

Domestico a angústia,
Corto delicada fatias de solidão para o jantar,
gelo o vinho,
escolho as taças,
acendo as veias.

O meu quarto tem bandeiras.
Caíram todos os vestidos dos cabides.
O gelo derrete.
O telefone tocou: foi engano.

Deixo atrás de mim portas abertas,
tomo táxis,
invado bares,
provo garrafas
e bebo bocas incandescentes
de álcool
e dentes.

Em algum lugar do mundo
espero a madrugada
e meu corpo sangra
duro e tinto
um poema.

De volta à casa
toco de leve os móveis.
Fecho as portas,
leio os classificados,
atraso os relógios.
Alimento a medusa
e para mim frito cebolas.

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PORTRAIT

para Flávio Américo

Quero uma foto minha
como me vejo:
de frente e
absolutamente quieta.
Olhos abertos
e a mão esquerda
tocando de leve a face.
Nos dedos, um cigarro aceso.
E penso.

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WAR GAMES

Antes do combate
a vigília:
fria hora de pensamentos.
Depois
sento no campo de mortos
e me delicio com teu corpo,
teus olhos cegos de peixe.
Para sempre muda a tua boca parva
e teus conceitos filosóficos
profundos como um pires.
Para sempre extinta
tua existência de mosca.
Para sempre calado
teu hálito
gelado
de cigarro
mentolado.

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Eu,
que li páginas em branco
que dormi sem lençóis
que pari filhos mortos

eu
cansei.

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CÁLICE

Beba formicida

ou esqueça.

 

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QUEM AMA NÃO MATA?

Eu te amo
muito
no escuro
do quarto
e depois
pergunto
se você
gostou?

 

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DOMINGO À NOITE

Exploro delicadamente
com as pontas dos dedos
tuas costas
nuas.
Impiedosamente
dormes,
enquanto eu,
sozinha e abstêmia
como, com maioneses,
dezessete gols fantásticos.

 

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GOOD MORNING


Mordo o fruto matinal do dia
e deixo o seu sumo
lentamente constranger minha garganta.

Ao sol me entrego
e em seu hálito
me banho,
enquanto o mel da manhã
me perfuma os seios
como rosas à janela
derramando pólen sobre o mundo.

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PAPO DE BAR

Não me provoque.
Sou doida
e quando bebo
fico um porre.
Cai fora.
Estou com sono.
Se você insistir mais
eu me apaixono.

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MULHER SEM PASSADO


Já pensou?
Sentar
na mesa do bar
e não ter nenhuma história
pra contar?

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QUARTO DE CASAL


Melhor quando se tem dois:
um na minha casa,
outra na sua.

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quarta-feira, 1 de março de 2023

 Clareanna Santana nasceu em Eunápolis(Ba) e fixou residência em João Pessoa. É Cientista Social e mestre em Antropologia pela UFPB. É poeta e publicou o livro Artéria. Publica seus poemas em fanzines, e-zines e revistas literárias.




 

 

verboesia

eu,
primeira pessoa de mim.
pronome possessivo insubordinado.
sou do avesso, desenquadrado.
parei de falar gramaticalmente.

tu,
sujeito aposto intransigente
espera de mim o inesperado,
me acende fogo entre dentes,
poetiza-me domesticado.

eu,
produto desequilibrado
na soma de tu,
complemento inconsciente,
resulta num nós bem apertado
conjugando o verbo inconsequente.





ARBÍTRIO

 

palma de cinco traços
carne de ponta com fibra

caminhos de linhas tortas
golpeada pela vida.
eis a mão e os calos
torneadas de danos
pele, unha e cicatriz
minha força motriz,
meus caminhos mundanos.

 

 

  

sonho

 

desejo oculto
e censurado.
de tantos feitos,
poucos fatos.
desejo nato
ou falsificado?

 

faz-se sonho,
fato,
desejo
ou pecado?

 

 

 

tatuagem

 

em seu corpo
marcas de caminhos inexplorados
criaram nova linguagem

como texto marcando a pele
em hiperbólica mensagem

leitura em tato
terreno em braile.

 

 

ARQUITETURA

 

No fio elástico da minh’alma
que desenha a minha cura

Faz de mim a ideia farta
e de tu a essência pura.

Quando você, doce, for água
eu, extensiva, serei chuva.
Se sua visão é sagaz e clara
a minha é lenta, estranha e turva.

Sua vida, se é amarga
eu sou a própria amargura.
Mais complexo que seu fardo
é a minha arquitetura.

 

 

 

Mu/dança

 

Mudar o estilo,
mudar o status,
mudar de vez…
Mudar com a Lua.
Ficar nova,
minguante,
nua,
talvez.

 

 

 

À porta da frente

 

no começo do fim
existe uma porta
um início pra mim
no meio da aorta.

 

Chico Cesar

 Chico Cesar nasceu em Catolé do Rocha(Pb) e reside em São Paulo. É Jornalista formado pela UFPB, poeta, cantor, compositorcom diversos álbuns gravados. Publicou O agente laranja e a maçã do amor (infantil), Versos pornográficos e Cantáteis – cantos elegíacos de amozade (audiolivro e livro).


 



1. gozo

 

Com a palavra gozo na boca
deixou escorrê-la ao peito
sem outro jeito:
umbigo virilha coxas
e entre as pernas gozo

gozo na semente
gozo nascente
dormente
na gente



2. cetro

ereto agora
o cetro em ti poria
coo se fora pura e puta poesia
recitar e excitar
até que esporraria
tudo em teus grandes lábios de veludo
depois ao cubo
ao cu iria
titilando as tetas de biquinhos duros como setas
e aí meu amor em ti
eu de mim me acabaria



8. fruta

mordo sua fruta roxa
suada
inchada
cheirosa rosa cheia
o sumo desce pela coxa
a língua acompanha
gota a gota
o olhar fixo no botão aceso
o olfato embriagado

um dedo ousado insinua-se atrás
e é mordido pelo seu piscar
a língua volta
nova dança até o novo jorro
(vem amor vem
que eu agora morro)



10. sem te dares conta

quisera estar sob tua escrivaninha
lambendo entre tuas pernas
enquanto escreves pra mim
(a saia levantada, afastada a calcinha)
estar aí sem te dares conta
sem tua plena consciência nem consentimento
sentindo o cheiro de tuas palavras
e teus cabelos repuxando meus cabelos
crispados os dedos
arrepiados os cabelos
sem te dares conta

morder tuas coxas
lamber os joelhos e atrás deles
sangrar a língua de tanto singrar
esse ir e vir de acompanhar seu pensamento
as palpitações e contrações do teu sexo desejoso
sem te dares conta
até o ponto final
(sem te dares conta)



14. candeeiro

o candeeiro do desejo aceso
ilumina a cumeeira:
é muito pra mim essa rede inteira



18. pastoral

o sol inclina para o monte
o capim se anima de orvalhos
a garoa sussurra brisa no ouvido da garota
eles se percebem na natureza
nos grãos de areia e pólen
no farfalhar das borboletas em trânsito
nas ondas em que se espreguiçam atlânticas
encontram-se onde não há esquinas
ouvem-se entre os ruídos do que é tudo
e amalgamam-se soltos
como nos sonhos que abrem os olhos e os poros
que arrebitam desejos
e arrebentam o balde dos açudes antigos:
riachuelos desandam



20. primeiro soneto

clama clama clama por mim ser visitada
aquela que à distância estou amando
sempre me pergunta quando quando
virei eu bater em sua morada

sua voz tremente desejante delicada
a minha alma vem há muito dominando
é a voz pura de uma mulher clamando
e que no fundo no fundo se sabe desejada

ah... ela sabe que ao longe também clamo
para estar junto dela e mesmo dentro
pra servi-la de escravo e ser seu amo

se eu for e ela abrir a porta sei que entro
mas agora distante eu que a chamo
pois eu moro na praia e ela no centro



21. sempre alerta

desejos de mulher
atendê-los
quem não quer



24. jerusalém

debora tem uma flor rosa entre as pernas
ela é toda um pouco rosa mas a flor é mais
essa flor onde debora é mais cheirosa
mais ainda quando se molha dela mesma
de sua própria chuva que é de dentro pra mais dentro}
e pra fora transborda

debora agora está plantada
no jardim das delícias em Jerusalém
plantada porque quer
quando quiser sairá pelas ruas
com a rosa molhada entre as pernas
toda ela rosa cheirosa
deixando um rastro de lua

debora demora a retirar-se
e quando vai ficar na umidade do ar
e na pedra do banco
regada pela chuva
e assim permanece 

 

 




CANTÁTEIS
Cantos elegíacos de amozade
Xilogravuras de João Sánchez
Rio de Janeiro: Garamond, 2005
ISBN 885-7617-066-3 

2

 

eu pra cantar não vacilo
digo isso digo aquilo
digo tudo que se disse
digo veneza recife
fortaleza que se abre
quero que o mundo se acabe
se não disser o que sinto
digo a verdade, minto
vertente me arrebata
minha voz é serenata
labareda e labirinto

 

 

24

 

o megafone do mundo
ômega fonema fundo
vulcão transboquiaberto
ogiva que explode perto
clitóris saliva glande
bolha de gozo que expande
os andes, os abricós
abrigai a todos nós
abri o eu da memória
vamos, deixe de história
e me diga "enfim, sós"

 

 

54

 

às vezes falta juízo
soez o gato sem guiso
vem miar e pedir leite
eu só peço que aceite
o atarantado pedido
asa de anjo caído
sem rede de proteção
cacos de aura no chão
o karma estatelado
vem me salvar do pecado
cometido por adão



61

vejo dor de gente adulta
no invisível que se avulta
e na vulva da quimeras
vejo oitocentas megeras
disputando um consolo
catapio e fura-bolo
velam o cadáver do cão
alaúde e violão
cadenciando o embalo
enxergo tudo e me calo
não vejo minha paixão


127

páginas finais cantáteis
as prosápias versáteis
os tremeliques ferrenhos
os trancelins advenhos
a reportagem de mim
história do amor sem fim
serafins e clarinetas
grutas gritos grotas gretas
é o amor uma renda?
profunda infinda fenda?
vaca de divinas tetas?

 


Ceiça Cirilo

 Ceiça Cirilo nasceu em Patos(Pb) e reside em João Pessoa. É graduada em Engenharia Civil pela UFPB e pós-graduada em Filosofia Contemporânea pela PUC-RJ. Escreve crônicas, contos e poemas. Publica prioritariamente nas redes sociais.






Registro

A vida dorme imersa
Nos tons castanhos de Steichen.
Na paisagem,
                    Abandono e silencio.
Um véu de horas finas
Cobre a sonolência dos dias.
Na imobilidade do lago,
                    O vazio do mundo.



Na noite



Há um cachorro que late ao longe
e nem suspeita que, na madrugada,
desperta medos adormecidos
desde a solidão da mãe grávida.

Há uma ventania que insufla as águas
do mar escuro, um farfalhar sem fim;
trovoadas recriadas com folhas de flandres
na infância de teatros improvisados.

E há assobios desesérados que gritam
do lado de fora às três e quarenta,
quando as pálpebras pesam e
os pensamentos perdem-se em incertezas:

Para onde vai a lua quando não aparece por aqui?
Em que varanda toca um sino de vento incessantemente?
Cachorros sonham com pessoas?






Tempos idos


No teto de folhas,
perfume de frutas caídas.

Gosto azedo traz
tempos espalhados no caminho.

Pitanga?

Pela ferida de seu tronco,
escorre a cor laranja.

No rasgo do manto de mofo,
um pedaço do mundo: Bacupari.


 

 

Amanhecer

Indiferentes à costumeira
lida dos pescadores,
à brisa que carregava
cheiro de peixe fresco,
à singularidade, dia após dia,
do nascer do sol subindo
das águas e iluminando
as velhas castanheiras,
suas folhas caídas ao amanhecer,
reluzindo feito contas prateadas,
embelezavam as calçadas do mercado.

 

 

BAILARINAS


Só no tempo em que
o vento despendurar
as folhas dos galhos, e o sol,
com habilidade de um ourives,
queimar suas peles,
filigranando ornamentos singulares;
caídas, como bailarinas num palco,
elas se dobrarão, delicadamente,
sobre si mesmas, e
levadas pelo vento,
darão piruetas no mundo.

 

 

Pérolas

Dizem que no mar mora uma deusa
que reina sobre todas as águas.
Dizem, ainda, que ela adora enfeitar-se
e que realiza desejos em troca de presentes.
Resolvi visita-la.
Fui à minha caixa de colares,
e escolhi o mais lindo
- havia tanto para pedir.
Percebi que o fecho
estava quebrado.
Ante a grandeza daquelas águas,
com o colar partido fechado na mão,
faltou-me coragem.
Mergulhei e abri a mão.

Bráulio Tavares

 Bráulio Tavares nasceu em Campina Grande. É escritor, compositor, poeta, cordelista e estudioso da cultura popular. Tem vários livros publicados e publica regularmente no blog Mundo Fantasmo www.mundofantasmo.blogspot.com




 

travessia


O lar

do passarinho

é

o ar

não

é o ninho.

 

 

A coisa

 

Eu quero inventar uma coisa, uma coisa viva, uma coisa

que se desprenda de mim e se mova pelo resto do mundo

com pernas que ela terá de crescer de si própria;    

e que seja ela uma máquina viva, uma máquina 

capaz de decidir e de duvidar, capaz de se enganar e de mentir.

Uma coisa que não existe. Uma coisa pela primeira vez.

Uma máquina bastarda feita de dobradiças e enzimas

e metonímias e quarks e transistores e estames

e plasma e fotogramas e roupas e sopa primordial...     

Quero apenas que seja uma coisa minha, uma coisa

que eu inventei numa madrugada enquanto vocês dormiam

e quando a vi recuei, e quando a soube pronta duvidei,

e vi a eletricidade do relâmpago abrindo seus olhos

e martelei seu joelho temendo-a, e mandando-a falar,

e gritei: "Levanta-te e anda!"- e a coisa era uma galáxia

tremeluzindo no centro da folha branca, me olhando

com meus olhos de homem, me sorrindo

com tantas bocas de mulher, me envolvendo

com sua sintaxe de coisa nova que força o mundo a mover-se,

fincando uma cunha no Real e se instalando naquela fenda,

como um setor a mais invadido um círculo já completo.

Eu quero que essa coisa existisse, assim como     

eu quis que eu seja. Quero vê-la brotar desarrumando.

Coisa criada, cobra criante, serpente criança,

criatura sentiente, existinte, sente, pensante,

cercada pela linha brusca do seu até-aqui

Essa coisa me conhecerá e não me reconhecerá    

como seu Criador. Essa coisa terá poder de me destruir,    

e de me recompor, e me mandar pedir-lhe a bênção.

Então pedirei. Sairei pelo mundo. Com minhas próprias pernas.

Finalmente leve e livre, tendo parido algo maior do que eu mesmo,

e disposto a me abraçar ao mundo, como quem desce do ônibus
na rodoviária da cidade onde nasceu. Mas o mundo!
O que é esse mundo onde eu ando agora? Olha a cor das casas,
o rosto do povo, o som da fala, a manchete dos jornais, o cheiro
do vento... que mundo é esse para onde retornarei depois de livre?
Fico parado, o coração pulando, e só daqui a pouco perceberei,
com uma surpresa antiga — que aquilo não é mais meu mundo:
e o mundo da coisa, é o mundo da minha Coisa.

 

 

 

NA HORA DO LOBO

Quando um homem consome a madrugada
rabiscando umas folhas de papel
e ele sabe que a vida é tonelada
oscilando na ponta de um cordel;

ele sabe que o fim de toda estrada
não desagua no inferno nem no céu,
e ele pensa na feira, na empregada,
água e luz, condomínio e aluguel;

quando um homem fatiga a voz cansada
com palavras da Torre de Babel
e ele entende que a coisa mais amada
se transmuda na coisa mais cruel;

quando a taça em que bebe está quebrada,
tanto vidro a boiar em tanto fel
e no peito uma dor desatinada
essa dor que é tão nítida e fiel;

quando um homem de boca tão calada
sente a mente girar num carrossel,
ele escreve através da madrugada
com cuidados de abelha que faz mel:
sua vida, talvez, foi destinada
a salvar estas folhas de papel.

 

 

O CASO DOS DEZ NEGRINHOS
(romance policial brasileiro)

 

Dez negrinhos numa cela
e um deles não mais se move.
Manhã cedinho eles contam,
e só tem nove.

Nove negrinhos fugiram
e um deles, o mais afoito,
lascou-se: os guardas pegaram.
Ficaram oito.

Oito negrinhos trabalham
de revólver e canivete.
Roupa cáqui vem chegando;
restam só sete.

Sete negrinhos seguiam
pela rua de vocês.
Um pai chamou a polícia.
Correram seis.

Seis negrinhos dão o balanço
bolsa, anel, relógio, brinco...
Houve um erro na partilha,
viraram cinco.

Cinco negrinhos de olho
à saída do teatro.
Um vacilou, deu bobeira,
sobraram quatro.

Quatro negrinhos trombando
todos quatro de uma vez;
um, o transeunte agarra,
mas não os três.

Três negrinhos batalhando
feijão, farinha e arroz.
Um deu-se mal — a comida
dava pra dois.

Dois negrinhos se embebedam
de brahma, cachaça ou rum.
Discussão; briga; navalha;
fica esse um.

Um negrinho vai-se embora
se mistura à multidão.
Por trás desse derradeiro
vem um milhão.

 

 

UM MUNDO 

 

—      Além do alcance do verso,
um mundo rola.
Quase o tocamos... tão perto,
e não se o toca.
Seu rosto é feito de ruas.
Passa, e desarquitetura
a nossa órbita.

—      Como são fundos seus rastros,
fortes seus ventos!
Seus contornos tão exatos,
conquanto imensos...
Nós o sentimos passando
e nem sequer suspeitamos
que estamos dentro.

—      O verso jamais o encaixa
nos seus arquivos
e nem lhe sequestra a carga
substantiva.
Nunca o algema a seus pactos
e o vê desdobrar-se, intato,
inatingido.

—      Aquém desse mundo, o verso
se desmascara:
lavoura de estéreis seixos
e nula safra.
Ourivesaria efémera:
lapidar límpidas gemas
sabendo-as falsas.

 

Bianca Rufino

 Bianca Rufino nasceu em Campina Grande, é poeta, declamadora, compositora, cantora, performista e brincante. Produz audiovisual e publicou os livros Zíngara e De quando o rio lavou as histórias. Anda pelo mundo “prestando atenção em tudo”, no seu Fusca chamado Chica Barrosa.

 


 

receita

 

quando o canto do pássaro te atravess
                                                                      ar

se faça de madeira (oca)

deixe ele maturar
no seu íntimo barril
como cachaça

canto bom
é canto curtido




ovulando

ando sentindo tremores no corpo
abalos sísmicos
     de madrugada

se escutar a terra partir: não se abale!
é o meu magma estremecendo as placas
tectônicas

 

regresso

 

a gente nasce
sendo semente,
gera e cria
até vir pesticida
digo, sociedade
afogando
a alma.
pra voltar a ser semente,
dessas de barriga grande
que engravidam
e alastram criação
pela beira de estrada
e rompem asfalto,
é preciso volver
água
chão
vento
ardência
até
virar semente
de
novo,
até
virar semente,
ovo.

 

tape os ouvidos

 

imagine
se o navegador
deixasse
de andar entre mares
porque alguém disse
do risco
ou a agricultora
deixasse
de cuidar de sua plantação
porque alguém disse
de uma praga na colheita
imagine
quanto se deixa
de crescer
porque alguém disse.

 

 

mentira

 

não escuto na rádio
os cantos potiguaras
tabajaras
as maracas
os tambores.

o termo popular é tão mentiroso
quanto o presidente.

 

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...