segunda-feira, 24 de abril de 2023

Manuel Camilo dos Santos

Manuel Camilo dos Santos (1905-1987) nasceu em Guarabira-PB e morreu no Rio de Janeiro-RJ. Foi cantador, violeiro, poeta popular, tipógrafo, horoscopista, escritor e editor. Publicou folhetos como O romance de Abel com Margarida e Peleja com Pedro Simão. Publicou ainda os livros Autobiografia do poeta, O caboclo do Bode, Viagem a São Saruê (obra traduzida para o francês) e O sabido sem estudo.




Autobiografia do Poeta

(…) Deus a todos deu um dom
para com ele viver.
quem logo acertar com o seu
vive bem e tem prazer
e o que não acertar
só leva a vida a sofrer.

Uns têm o dom para artes
outros para a agricultura.
já outros para a ciência
porém outros é pra leitura.
enquanto uns vivem da música
outros exercem a pintura.

Alguns têm o dom profético
outros o dom da cirurgia
uns têm o dom de comércio
o meu dom é poesia.
e nele graças a Deus
vivo bem, tenho alegria.

Cada um para o que nasce
apoiado este dizer.
mas muitos deixam o seu dom
pensando enriquecer.
vão procurar longe
onde só acham o sofrer.




*****



Viagem a São Saruê

Doutor mestre pensamento
me disse um dia: – Você
Camilo vá visitar
o país São Saruê
pois é o lugar melhor
que neste mundo se vê.
Eu que desde pequenino
sempre ouvia falar
nesse tal São Saruê
destinei-me a viajar
com ordem do pensamento
fui conhecer o lugar.
Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
eu vi a aurora abismada.
Pela aragem matutina
eu avistei bem defronte
a irmã da linda aurora
que se banhava na fonte
já o sol vinha espargindo
no além do horizonte.
Surgiu o dia risonho
na primavera imponente,
as horas passavam lentas
o espaço incandescente
transformava a brisa mansa
em um mormaço dolente.




*****




O Sabido sem Estudo

Deus escreve em linhas tortas
Tão certo chega faz gosto
E fez tudo abaixo dele
Nada lhe será oposto
Um do outro desigual
Por isto o mundo é composto

Vejamos que diferença
Nos seres do Criador
A águia um pássaro tão grande
Tão pequeno um beija-flor
A ema tão corredeira
E o urubu tão voador

Vê-se a lua tão formosa
E o sol tão carrancudo
Vê-se um lajedo tão grande
E um seixinho tão miúdo
O muçu tão mole e liso
O jacaré tão cascudo

Vê-se um homem tão calado
Já outro tão divertido
Um mole, fraco e mofino
Outro valente e atrevido
Às vezes um rico tão tolo
E um pobre tão sabido

É o caso que me refiro
De quem pretendo contar
A vida d’um homem pobre
Que mesmo sem estudar
Ganhou o nome de sábio
E por fim veio a enricar

Esse homem nunca achou
Nada que o enrascasse
Problema por mais difícil
Nem cilada que o pegasse
Quenguista que o iludisse
Questão qu’ele não ganhasse

Era um tipo baixo e grosso
Musculoso e carrancudo
Não conhecia uma letra
Porém sabia de tudo
O povo o denominou
O Sabido Sem Estudo…

Um dia chegou-lhe um moço
Já em tempo de chorar
Dizendo que tinha dado
Cem contos para guardar
Num hotel e o hoteleiro
Não quis mais o entregar

O Sabido Sem Estudo
Disse: – isto é novidade?
Se quer me gratificar
Vamos lá hoje d etarde
Se ele entregar disse o moço:
– Dou ao senhor a metade

O Sabido Sem Estudo
Disse: – você vá na frente
Que depois eu vou atrás
Quando eu chegar se apresente
Faça que não me conhece
Aí peça novamente

O Sabido Sem Estudo
Logo assim que lá chegou
Falou com o hoteleiro
Este alegre o abraçou
O rapaz nesse momento
Também se apresentou

O Sabido Sem Estudo
Disse: – Eu quero me hospedar
Me diga se a casa é séria
Pois eu preciso guardar
Quinhentos contos de réis
Pra depois vir procurar

Respondeu o hoteleiro:
– Pois não, a casa é capaz
Agora mesmo eu já ia
Entregar a este rapaz
Cem contos que guardei dele
Há pouco dias atrás

Nisto o dono do hotel
Entrou e saiu ligeiro
Com um pacote, disse ao moço:
– Pronto amigo, seu dinheiro
Confira que está certo
Pois sou homem verdadeiro

Aí o Sabido disse:
– Ladrão se pega é assim
Você enganou o tolo
Mas foi lesado por mim
Vou metê-lo na polícia
Ladrão, safado, ruim

O hoteleiro caiu
Nos pés dele lhe rogando:
– Ó meu senhor não descubra
Disse ele: – só me dando
A metade do dinheiro
Que você ia roubando

O hoteleiro prevendo
A derrota em que caía
Além de ir pra cadeia
Perder toda freguesia
Teve que gratificar-lhe
Se não ele descobria

Foi ver os cinqüenta contos
No mesmo instante lhe deu
Outros cinqüenta do moço
Ele também recebeu
E disse: – nestas questões
Quem ganha sempre sou eu

E assim correu a fama
Do Sabido Sem Estudo
Quando ele possuía
Um cabedal bem graúdo
O rei logo indignou-se
Quando lhe contaram tudo

Disse o rei: – e esse homem
Sem nada ter estudado
Vive de vencer questão?
Isso é pra advogado
Vou botá-lo num enrasque
Depois o mato enforcado

O rei mandou o chamar
E disse: – eu quero saber
Se o senhor é sabido
Como ouço alguém dizer
Vou decidir sua sorte
Ou enricar ou morrer

Você agora vai ser
O médico do hospital
E dentro de quatro dias
Tem que curar afinal
Os doentes que lá estão
De qualquer que seja o mal

Se você nos quatro dias
Deixar-me tudo curado
De forma que fique mesmo
O prédio desocupado
Ganhará cinco mil contos
Se não será degolado

Está certo disse ele
E saiu dizendo assim:
– O rei com essa asneira
Pensa que vai dar-me fim
Pois eu vou mostrar a ele
Se isto é nada pra mim

E chegando no hospital
Disse à turma de enfermeiros:
– Vocês podem ir embora
Eu sou médico verdadeiro
De amanhã em diante aqui
Vocês não ganham dinheiro

Porque amanhã eu chego
Bem cedo aqui neste canto
Mato um destes doentes
E cozinho um tanto ou quanto
Com o caldo faço remédio
E curar os outros eu garanto

Foram embora os enfermeiros
E ele saiu calado
Os doentes cada um
Ficou dizendo cismado
– Qual será o que ele mata?
Será eu? Isto é danado!…

Outro dizia consigo:
– Será eu o caipora?
Mais tarde um disse: – E eu
Estou sentindo melhora
Outro levantou e disse:
– Estou melhor, vou embora

Um amarelo que estava
Batendo o papo e inchado
Lavantou-se e disse: – Eu
Estou até melhorado
Pois já estou me achando
Mais forte, gordo e corado

Já estou sentindo calor
De vez em quando um suor
Um doente disse: – Tu
Estás é muito peior
Disse o amarelo: – Não
Vou embora, estou melhor

E assim foram saindo
Cada qual para o seu lado
Quando chegava na porta
Dizia: – Vôte danado!
O diavo é quem fica aqui
Pra amanhã ser cozinhado

Um moço disse que ouviu
Um mudo e surdo dizer
Que um cego tinha visto
Um aleijado correr
Sozinho de madrugada
Já com medo de morrer

De fato um aleijado
Que tinha as pernas pegadas
Foi dormir, quando acordou
Não achou os camaradas
A casa estava deserta
E as camas desocupadas

Com medo pulou da cama
E as pernas desencolheu
Rasgou a “péia” no meio
E assombrado correu
Dizendo: – Fiquei dormindo
E nem acordaram eu!…

No outro dia bem cedo
O Sabido Sem estudo
Chegando no hospital
Achou-o deserto de tudo
Sorriu e disse consigo:
– Passei no rei um canudo

O Sabido Sem Estudo
Chegou no prazo marcado
Na corte e disse ao rei:
– Pronto já fiz seu mandado
Os doentes do hospital
Já saiu tudo curado

O rei foi pessoalmente
Percorrer o hospital
Não achando um só doente
Disse consigo afinal:
– Aquele ou é satanás
Ou um ente divinal

Deu-lhe o dinheiro e lhe disse:
– Retire-se do meu reinado
O Sabido Sem Estudo
Lhe disse: – Muito obrigado
Pra ganhar dinheiro assim
Tem às ordens um seu criado

 

Ariano Suassuna

Ariano Suassuna (1927- 2014) nasceu na cidade de Parahyba do Norte, hoje João Pessoa e foi um escritor brasileiro. Foi poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, professor e advogado. Em 1989, foi eleito para a cadeira n.º 32 da Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi eleito para a cadeira n.º 18 da Academia Pernambucana de Letra e em 2000, ocupou a cadeira n.º 35 da Academia Paraibana de Letras.Ariano Suassuna (1927- 2014) foi um escritor brasileiro. "O Auto da Compadecida", sua obra-prima, foi adaptada para a televisão e para o cinema. Sua obra reúne, além da capacidade imaginativa, seus conhecimentos sobre o folclore nordestino.


A infância

Sem lei nem Rei, me vi arremessado
bem menino a um Planalto pedregoso.
Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso,
vi o mundo rugir. Tigre maldoso.

O cantar do Sertão, Rifle apontado,
vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto demente, sufocado,
rugido nos Caminhos sem repouso.

E veio o Sonho: e foi despedaçado!
E veio o Sangue: o marco iluminado,
a luta extraviada e a minha grei!

Tudo apontava o Sol! Fiquei embaixo,
na Cadeia que estive e em que me acho,
a Sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!




*****



Nascimento - O exílio

Aqui, o Corvo azul da Suspeição
Apodrece nas Frutas violetas,
E a Febre escusa, a Rosa da infecção,
Canta aos Tigres de verde e malhas pretas.

Lá, no pelo de cobre do Alazão,
O Bilro de ouro fia a Lã vermelha.
Um Pio de metal é o Gavião
E suave é o focinho das Ovelhas.

Aqui, o Lodo mancha o Gato Pardo:
A Lua esverdeada sai do Mangue
E apodrece, no medo, o Desbarato.

Lá, é fogo e limalha a Estrela esparsa:
O Sol da morte luz no sol do Sangue,
Mas cresce a Solidão e sonha a Garça.




*****




A morte - O sol do terrível

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao som do Sino.
Verei o Jaguapardo e a luz da Tarde,
Pedra do Sonho e cetro do Divino.

Ela virá - Mulher - aflando as asas,
com o mosto da Romã, o sono, a Casa,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.




*****




A mulher e o reino

Com tema do Barroco brasileiro

Ó! Romã do pomar, relva esmeralda
olhos de ouro e azul, minha Alazã!
Ária em forma de Sol, fruto de prata
meu chão, meu anel, Céu da manhã!

Ó meu sono, meu sangue, dom, coragem,
Água das pedras, rosa e belvedere!
Meu candeeiro aceso da Miragem,
Meu mito e meu poder - minha Mulher!

Diz-se que tudo passa e o Tempo duro
tudo esfarela: o Sangue há de morrer!
Mas quando a luz me diz que esse Ouro puro

se acaba por finar e corromper,
Meu sangue ferve contra a vão Razão
E pulsa seu amor na escuridão!




*****



Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.




*****




O mundo do sertão

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

Alberto Lacet

Alberto Lacet nasceu em Teixeira-Pb e vive atualmente em João Pessoa-Pb. É artista plástico e escritor. Como pintor fez diversas exposições no Brasil e no exterior, tendo sua obra consagrada. Começou a escrever jpa na maturidade mas já publicou um romance, um livro de contos e o livro de poemas Explicações do Fogo, de onde selecionamos os poemas abaixo.



DINÂMICA

Um homem pode cair de um outono
E dissolver-se na água de um rio
E ser depois repatriado num peixe
De estômago vazio

Bastará o mero outono cruzando indiferente
Para um rio soltar-se no ar como folha ao vento
Um peixe embainhar-se na pedra
Esta lapidar folha de faca
Veremos terra vomitando sopa de fogo e tripas
Também pode dissolver-se o vento no vazio




*****




3 LEÕES

 

1. O FORJADO

Um leão desce à cova
No iminente sol da pele
Lhe basta um pouco de noite.

Teria sido forjado
De metais confusos
Quando de uma bola de fogo
A terra ainda não passava

Do que hoje resta do inicial leão
Coração é peça mais antiga
O restante se fez à volta

Uma eternidade o depurou
Vindo a ter hoje cauda e juba:
A cauda é um tição
A juba, resplendor




2. O ASSOMBRADO

 

(Deixe-o ao sol):
Destino de leão morto
É estar insepulto

Pois do contrário
Animal covoso que é
O bicho se recompõe

rasga ventre da terra
Assusta vulcão
Viola sepulcro humano

 

 

3. O ENSOMBRADO


Se pira de sol fustiga sombra
Um jeito de ser definitivo
Ao leão, abriga-se
Na argila

Na cova, apenas coração conserva-se
Em fogo macio azul de álcool
Enquanto o restante
Leão esfria

Suportará a chama
A perigosa incontinência
De acender e apagar silencioso

Aqui e ali se lambe e se monitora:
Viver é gastar inexaurível
Combustão estelar




*****





A CONQUISTA


E assim, após longo cerco
Caiu a cidadela

Penetramos sob olhar
Cabisbaixo de ruínas

Um escombro
De quando em quando
Fumega e nos interroga

Um silêncio
Se nos depara

De toda exuberância que havia
Não restou senão um eco
E nem assim ecoa
na acrópole vazia
vem das artérias
Do nosso anterior stadium
Tumultuoso que trazíamos

Porém entre os destroços
Escutar:
Breve trinado de pássaro
Solitário rumor de água




*****




SOLIDÃO


Uma luz parva brotando de lá
Do nascente engolfado pela chuva
Surgirá o dia – sim
Desse parto frio e demorado

A manhã desfalecendo no colostro.




*****




ESTALEIRO


O que não diz no bar, na rua
Escoa na garganta do poema
Sussurrado em transe

Acode pelos labirintos do grito
Pelos estampidos da mente na voz
E pelo que se gastou, se fraturou
Na multidão do que não disse

Num espirrar de pétalas
Foram-se várias sílabas
Depois da chuva forte
Caindo, veio afogar
As sobras das palavras

O silêncio desce enfim ao estaleiro
Ali onde uma vez mais
Dado um tempo se realinham
Poema, palavra e sílaba

Johniere Alves Ribeiro

 Johniere Alves Ribeiro nasceu em Campina Grande-Pb onde reside. Formado em Letras pela UFCG, mestre e doutor em Literatura e Interculturalidades pela UEPB. É poeta e professor de Literatura e Produção Textual. Participa de diversas antologias e publicações na internet. Publicou "Fogueira de espelhos ou alquimia do cais" e "Página para versos".


Corpo II


No ecossistema
Dos lençóis
Trato da
Biodiversidade
Das nuances
Hermenêuticas
No opaco do teu corpo




*****




do fim das coisas


meu silêncio, mangue diurno
braços longos ao vento, Deus os fez,
sei agora, foi empalhado para o a/deus




*****




prédio versus jardineira


no
peito
da
noite
me 
enconstei
Mas estou sem apoio
desde que na jardineira de minha janela
pousou aquele prédio
                             solidão estancou-me




*****




prenda minha


ela
escreveu meu amor
em carta
e depois despachou
[à selo]
sem destinatário
                         ou
remetente
meu amor almapenou




*****




imagem


minhas mãos são acenos
em carne viva
adormecida
não sei de quê
são pássaros ]
em não [ escaplelados
por viver



Orlando Tejo

 Orlando Tejo (1935-2018) nasceu em Campina Grande-Pb. Poeta, advogado, ensaísta, jornalista, folclorista e professor. De sua autoria: Conceição 63; Impasse; Soneto dos dedos que falam, e Zé Limeira: O poeta do absurdo.




Soneto Dos dedos que falam


 

Que importa que foguetes cruzem marte

E bombas de hidrogênio acabem tudo,

Se aos meus dedos, teus dedos de veludo

Ensinam que o amor é também arte?

 

Não desejo mais nada além de amar-te

E em êxtase viver, absorto e mudo,

Sorvendo da ternura o conteúdo

Que antes te buscava em toda parte!

 

Esses dedos que afago entre meus dedos,

Que acaricio a desvendar segredos

De amor nestes momentos que nos prendem,

 

Têm qualquer coisa que escraviza e doma,

Porque teus dedos falam num idioma

Que só mesmo meus dedos compreendem!




*****

 

 

Conceição 63

 

Rua da conceição, sessenta e três

(a artéria tem o ar de um cais comprido)

aqui, anos sem fim tenho vivido

buscando a infância azul que se desfez.

 

Talvez seja isso um sonho, mas talvez

este meu velho abrigo tenha sido

da mesma argila minha construído,

porque é a mesma a nossa palidez!

 

Ele a mim se assemelha: é ermo e trist.

No jardim, no quintal, no chão, no teto

em tudo a mesma semelhança existe.

 

No tempo, entanto, aos céleres arrancos,

o seu telhado vai ficando preto

e os meus cabelos vão ficando brancos




*****

 

 

 

Impasse

 


Se ficar onde estou não faço nada,

Se sair por aí corro perigo,

Se me calo minhalma é sufocada,

Se disser o que sei faço inimigo...

 

Se pensar vou trair a madrugada

E se sonho demais vem o castigo,

Se quiser subo até o fim de escada,

Mas precisa brigar, e eu não brigo!

 

 

Se cantar atropelo o contracanto,

Se não canto maltrato o coração,

Se me faço sofrer me desencanto,

 

Se reprimo o ideal perco a razão,

Se perder a razão, resta-me o pranto

E meu pranto não faz uma canção.




*****




Conceição 63



Rua da conceição, sessenta e três
(a artéria tem o ar de um cais comprido)
aqui, anos sem fim tenho vivido
buscando a infância azul que se desfez.

Talvez seja isso um sonho, mas talvez
este meu velho abrigo tenha sido
da mesma argila minha construído,
porque é a mesma a nossa palidez

Ele a mim se assemelha: é ermo e triste.
no jardim, no quintal, no chão, no teto
em tudo a mesma semelhança existe.

No tempo, entanto, aos céleres arrancos,
o seu telhado vai ficando preto
e os meus cabelos vão ficando brancos.




*****



“NÃO AGUENTO MAIS”

 

Eu saí da Paraíba,

Minha terra tão brejeira,

Pra fazer publicidade

Na Veneza Brasileira

Onde a comunicação

É toda em língua estrangeira.


É uma ingrizia só

O jeito de se falar

O que a gente não compreende,

Passa o tempo a perguntar

E assim como é que eu vou

Poder me comunicar?


É bastante abrir-se a boca

O “inglês” fala no centro,

Nessa Torre de Babel

Eu morro e não me concentro

Até parece que estamos

De Nova Iorque pra dentro!


Lá naquele fim de mundo

Esse negócio tem vez

Porque quem vive por lá

O jeito é falar inglês,

Mas, se estamos no Brasil

Tem que falar Português!


Por que complicar a guerra

Em vez de se esclarecer?

E se “folder” é um folheto

Por que assim não dizer?

Pois quem me pedir um “folder”


Eu vou mandar se folder.

Roteiro é “story board”

Nesse vaivém estrangeiro,

Parece até palavrão

Que se evita o tempo inteiro

Porque seus filhos das putas,

A gente não diz roteiro?


Estão todos precisando

Dos cuidados do Pinel

Será feia a nossa língua?

É chato nosso papel?

Por que esse tal de “out door”

Substituir painel?


É desrespeito à memória

De Camões que foi purista

Esse massacre ao vernáculo

Não aguenta o repentista

Pois chamam “lay out-man”

O homem que é desenhista!


Matuto da Paraíba,

Aqui juro que não fico,

Onde até se tem vergonha

De um idioma tão rico

Por que chamar de “free-lancer”

Um sujeito que faz bico?


Publicidade de rádio

Apelidaram de “spot”

E tem outras besteiradas

Que não cabem num pacote.

Acho que acabou o tempo

De acabar esse fricote!


Por exemplo: “body type”

“Midia”, ”top”, “merchandising”,

“Checking list”, “past up”

(Que se diga de passagem)

“Briffing”,“Top”, “Marketing”,

Tudo isso é viadagem!


Já é hora de parar

com esse festival grosso

Para que o nosso idioma

Saia do fundo do poço.

Pra isso eu faço esse “raff”,

Isto é, perdão, esboço!

 

José Leite Guerra

José Leite Guerra nasceu em João Pessoa-Pb, onde ainda vive. Escritor, poeta e cronista paraibano. Suas publicações literárias estão difundidas em diversas antologias, suplementos e revistas. Em 2014 participou do Congresso Brasileiro de Poesia em Bento Gonçalves RS. Constando alguns de seus poemas da antologia  “Poesia do Brasil”.


álbum de fotografias

álbum de fotografias
eterniza dias até que traças roem os traços de cada face lugares, poses invasão fatal destrutiva, inglória não mede distância pra destruir memórias em amados postais instantâneas histórias. *****
poema da busca

além da noite nublada
existe um sol à espera
além do quase nada
existe a vida inteira
além dos lábios cerrados
existe o sorriso guardado
para abrir-se em pétalas
com as cores do arco-íris
além da palavra torta
escrita em traços rudes
a lição de mais um dia
descrito entre lacunas
existe em verso ou prosa
felizes riscos de ternura
lavrados e à procura
de levar a mais ardorosa
mensagem a quem escuta
vozes em sons de sinos
despertando para a luta
trazendo festa aos meninos
ou a pessoas adultas
além do corpo e da alma
existem cicios de calma
e adocicadas frutas
além da triste penumbra
o palpitar de luz forte
a ferir alguma tumba
e fazê-la senda suporte
para caminhos retos
e palmilhares e tetos
abrigos para os imersos
em mares sem sul e norte
além de todos os dias
existem mil utopias
a serem descobertas
por horizontes cobertas
além de algum desalento
sopra um silvo de vento
que traz sinais de alerta
para o nascer de outras vias. *****
canoa morta

assusta-me a lufada do vento sibilante
idioma enfurecido de temporal
soa como trombone retumbante
no tímpano de anoitecer em sombras
coqueiros vergam seus mastros
cingidos em âncoras de raízes
dão-se por perdidos e rastros,
sobras e sombras em deslizes
gasta de mares e fortes ventos
repousa a canoa morta, desolada
no cemitério da praia sem alento
e para completar o fim do dia
lufadas cantam com forte acento
embaraçada e vaga sinfonia. *****
Sexta da Paixão


Hoje é dia de guarda
Os santos tristes
Aguardam o raiar
Do domingo de liberdade
Calados em seus nichos
Ficam petrificados e quietos
E se lhes move a penitência
Feita em estações e vias
Sacras, misereres para apagar
Pecados dos que ainda vivem
Se movendo neste corrupto
Mundo de humanos teimosos
O sangue jorra em templos
E hóstias se corporificam
Em salvadores meios
De ganhar a sã Fortaleza
No chão da igreja penumbrosa
Um homem chora de fome
Não tem o santo interesse
De seguir a procissão
Que segue em busca do pão
Dos anjos, o salvador alento
Para os sofridos de corpo e alma
Que a fé aponta verdadeiro
Ninguém o olha, nem quer saber
Que o desconhecido emite
Uma luz resguardada, oculta
Em seu perfil humano-divino. *****
um livro aberto

um livro aberto
descoberto
é continente
antes que lido
depois a lente
mais potente
cristal polido
um livro aberto
oferecido
a que devassem
suas entranhas
folhas floresta
onde as plantas
são palavras
tingido encanto
a quem se atreve
de invasor
ao que se escreve
ao que se diz
um livro aberto
em nobre sina
nunca se esquece
do que ensina
um livro aberto
é uma mina...

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...