sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

ANGÉLICA LÚCIO

Angélica Lúcio nasceu em Patos, no Alto Sertão da Paraíba. É jornalista profissional e poeta. Participou de algumas antologias paraibanas. Ainda inédita em livro.





"Angélica Lúcio trabalha com rigor e economia nas palavras. Há em seus poemas um tenso equilíbrio entre o elemento mineral , que serve de referência à maioria das imagens, e a inquietude de uma alma que oscila entre os apelos da carne e a salvação."
(Chico Viana)





Pétrea

Por vezes,
me sinto pedra
pele salgada
sob a língua vermelha
em esgares de náufrago
estátua translúcida
sumindo em saliva:

a eterna mulher de Lot.




Pérola


Minha dor é molusco
e se faz de ostra:
sempre me enclausura.
Brinca com hipocampos,
faz cócegas em Netuno
e me quer sua filha.
Talvez uma pérola.



Sacrossanta

 
Se sois santo
havereis
de me querer
todos os dias
- corpo e hóstia –
Aos teu pés
Imolando-me no altar
 
se santo não sois
por que havereis
de me querer
pura e pedra
e também sacrossanta
por que não esfinge
- pronta a te devorar?


 

 

Antífonas
 
Não sou fraca por obra de Deus
em mim, os seios pedem abrigo
as dobras do corpo, flagelação
por  isso, valho-me de rezas,
terços e xaropes
e me desdobro em antífonas:
antes o gozo do que a morte
antes o cancro do que a salvação.

 

 

O gato
 
O olho do gato
tem outro gato
no espelho
 
tem outro pêlo
no fio
tem outra lida
no sê-lo
 
tem outra vida
no cio
tem outra luta
no relho
o olho do gato
não sabe da vida
um fio
não sabe da noite 
um pêlo.

 

 

Tessituras
 
Se me esqueço
em novelo de dedos
não me fio em roca e fuso
de tessituras alheias.
Ainda que fique sem pão
colher de pau e jasmim
tapete de tez vermelha
ventilador e dentifrício,
Ainda que perca o elo,
não me fio 
e me fecho em minotauro.

 


 

Filhos
 
Meu pai
pensava filhos
como se quisesse açude
pomar curral e galinhas
fazia filhos
como se pensasse
em sítio: 
de sua carne.

 


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

MARIANA TABOSA

Paraibana de Pombal, Mariana Tabosa começou a se interessar literatura ainda na infância quando também começou a experimentar a escrita. Na adolescência esse gosto pela literatura aprofundou-se com a leitura de Cecília Meireles, Florbela Espanca e Clarice Lispector. Inicialmente não pensava em escrever livros, todavia já tem dois livros publicados e bem recebidos pela crítica e pelo público. O primeiro deles foi "A mulher Fósforo e As nve Caudas da Raposa. É doutora em literatura e atualmente vive no Canadá.




Sobre o seu segundo livro, escreveu a poeta Socorro Nunes: "Esta Raposa de Mariana "não cabe em uma fotografia", suas caudas gestadas numa linguagem enxuta e mínima, "constroem um jardim não acadêmico". O silêncio cortante após a morte, o falo sem vida, indicam a impotência do corpo e do ser diante do nada que se avizinha, alertam os versos de Mariana: "a morte traz um silêncio/ que é como um apito/ agudo e fino/ que só os cães podem escutar". A poeta sabe da simplicidade e da suavidade da morte, pois são moléculas que também atravessam a poesia dando origem a um "caleidoscópio" "que nunca se repete". Em tempos de pandemia, "a mulher forte" e suas nove caudas armam-se de instintos, palavras, sentidos e desejos, pois "centenas de planos deixados/ pelo caminho/ o vírus convida a regressar ao/ instinto, afinal/ somos animais que precisam ganhar por mérito o direito de ser-estar-por mais um dia". Cabe a nós tomar o suco, curar a cicatriz e esperar o ressoar da raposa-poesia num ciclo que não se repete e não se submete ao relógio. Se a vida não é uma linha reta, diz a poeta, seguimos o caminho singular de cada texto. E migre, se for preciso."


POEMAS DE MARIANA TABOSA



Parafilia


A minha poesia
certo dia
teimou em mudar

Viu que precisava de maldade
desprendimento
E flertou com a realidade

Pensou  que poderia ser
como "poesia de homem"
mas feita
mesmo por uma mulher

(- E poesia tem sexo, tem biologia?)




Túmulo para pagantes


O museu é uma importante reunião de
coisas mortas selecionadas e organizadas
em uma história inventada e certa

Tudo está meticulosamente exposto
desrespeitando o caos natural
e agradando a ideais do presente

O museu guarda coisas sem dono
é catalogação sem ação.
Construção de memória sem passado

A cultura transfigurou o seu verdadeiro significado
((de túmulo eterno para falsos fetiches)
e garantiu os pagantes




(***)

Viajo para praticar a
DESAPRENDIZAGEM
para perder muitas coisas
para abandonar
para DESCRESCER
Verdades absolutas
impressões doentias
Comportamentos sãos
Falsas alegrias.


(***) Metáfora fria

Não sei qual é a cara da Criação não sinto mais a salvação da Metáfora fiquei fria Sou o feminino sem emoção. Tenho ovários, mas não Produzo.




Vida acadêmica Retrato da desnatueza
Árvore: tem vida, não tem Movimento pé que não frutifica Pé Fincado É vaso de cristal, montado por especialista em loja de shopping com flores de plástico Túnel de vento sem vento Vácuo no vazio - Retrato de pai e mãe.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

MARGARIDA LUCENA DA HORA

Margarida Lucena da Hora nasceu em Guarabira.



Margarida Lucena da Hora é paraibana de Guarabira e nasceu em 16 de abril de 1924. Morreu em 2010, em Recife-PE, onde residia desde 1944. Na época, mudou-se para Pernambuco com o objetivo de prestar vestibular para a Faculdade de Direito. Foi sócia fundadora da ABDE, hoje UBE-PE – União Brasileira dos Escritores. Seu trabalho como escritora aparece em diversos jornais, domo Jornal do Commercio (PE), Diário da Noite (PE), Jornal da OAB-PE e Jornal Pequeno (PE). Também em revista como Continente, Horizonte, revista Branca (RJ) e foi traduzida para o Espanhol na revista Francachela, de Buenos Aires. Casou em 1948 com o escultor Abelardo da Hora, com quem teve sete filhos.

Para o jornalista e escritor Willian Costa, “A poesia de Margarida é de qualidade, de um lirismo que não se deixa contaminar pela pieguice e é de belas e fortes imagens, onde a autora, por meio do eu poético, revela suas emoções, sua leitura acerca da vida, da natureza, do amor e da arte. O leitor ficará, com certeza, satisfeito em perceber que a poesia de Margarida não está afastada da qualidade estética da obra do marido. O que as diferencia é apenas a linguagem: um faz poesia com bronze e a outra, com palavras”. O livro Poemas Reunidos foi publicado em 2008, em Recife e republicado pela Editora A União, em 2022.

 

MEU OFÍCIO

 

Não sei se a mágoa me procura
Ou, inquieta, eu a busco em punição.
Prisioneira do imperfeito, sinto erros
No perfeito, teço abismos do meu chão.

Circunstância no malogro eterno,
Passo a passo caminho no imprevisto.
Recolho e retorno do passado
No ontem, o fenecer do amanhã.

Floresta sem força, sem espinhos,
Na sombra, amadureço sem memória
Buscando no espaço das palavras

A voz e a canção do ressurgir.

 

 

REFLEXO

 

Esta face que se evade escura,
Este corpo que se verga na noite,
E, áspero, queda ferido
Entre palavras e lâminas,

Do chão ressurge,
Para o espaço das estrelas.

E na mais alta montanha
                              se desdobra,
                                        ilimitado,
Na madrugada fugaz.

 

 

PRELÚDIO

Passeia e passa
Sem olhar para trás.

Uma estátua de pedra
Tornará
Teu sangue, tua carne,
Mineral.

Ressurgirás
Com os deuses
No deserto.

 

 

CANÇÃO PARA AS DEUSAS DE PEDRA DE ABELARDO

 

As estátuas choram
Sobre elas me debruço,
Abro as portas na escuridão
E troco angústias e sinais.

No cenário,
Os olhos da lua
Espelham,
Suas pálpebras de pedra,
Seus corpos de deserto.
Eterno,
O Deus dos labirintos,
Vigília e punhal,
Costura em sudário,
Sufoca o lamento,
Apelo de vida,
Que num brado,
Estátuas desatam.

 

 

POEMA AO VENDEDOR DE PIRULITO
(Escultura de Abelardo da Hora)

 

Uma mancha de sombra no chão secular,
Um traço de poeira no céu todo azul,
Acordes tirados de lábios famintos,
Distante harmonia ferindo o silêncio.

O sol na calçada enxuga teu pranto
Que cala e se perde no chão e na pedra.
Teu passo é caminho de tempo e de luta,
Teu canto pregão enfeita a miséria.

Os homens não sentem a muda censura
Que cobre teu rosto de adulta tristeza
E fere teus membros, menino sem lar.

Os homens não veem a trágica beleza
Que mora em teu corpo pesado de andrajos,
Vestido de sons que chora teu peito.





Fonte: Jornal A União.

 


 


segunda-feira, 11 de abril de 2022

Alex Polari

Alex Polari é paraibano de João Pessoa.



Alex Polari Alverga é paraibano de João Pessoa e nasceu em 1951. Seu primeiro livro, Inventário de Cicatrizes, foi publicado em 1978 quando ele ainda estava preso por sua militância política contra o regime militar. Permaneceu preso até 1980 e ao sair da prisão ingressou na comunidade esotérica Santo Daime, no estado de Amazonas.

 

Para o crítico Carlos Henrique de Escobar, “Alex político e Alex poeta, como alguns dos seus muitos companheiros em diferentes prisões do país, alguns já libertados, outros exilados, poderão significar toda uma postura e uma produção artística (na poesia, na pintura e no romance) que rompe com os padrões estéreis e reacionários de até então."

 

Fonte: www.itaucultural.org.br/



 

 

 

AMAR EM APARELHOS

 

Era uma coisa louca

trepar naquele quarto

com a cama. suspensa

por quatro latas

com o fino lençol

todo ele impresso

pelo valor de teu corpo

e a tinta do mimeógrafo.

 

Era uma loucura

se- despedir da coberta

ainda escuro

fazer o café

e a descoberta

de te amar

apesar dos pernilongos

e a consciência

de que a mentira

tem pernas curtas.

 

Não era fácil

fazer o amor

entre tantas metralhadoras

panfletos, bombas

apreensões fatais

e os cinzeiros abarrotados

eternamente com o teu Continental,

preferência nacional.

 

Era tão irracional

gemer de prazer

nas vésperas de nossos crimes

contra a segurança nacional

era duro rimar orgasmo

com guerrilha

e esperar um tiro

na próxima esquina.

 

Era difícil

jurar amor eterno

estando com a cabeça

à prêmio

pois a vida podia terminar

antes do amor.

 

 

NOITES NO PP (Presidio H. Gomes)

 

Estou aqui, pessoal, na C-8

nossa cela de passagem

nesse famigerado

Presídio Hélio Gomes

ex-Pp,

Presídio Policial,

rodeado de faqueiros

bichas, fanchones

guardas e faxinas.

No alto de minha beliche de pedra

leio o semanário Opinião,

autores latino-americanos

e vez ou outra espio a TV.

Porto apenas uma cueca Zorba

fumo incontáveis cigarros

Hollywood

bebo infindáveis canecas

de café Pelé

e em vez de grilhetas,

calço as legítimas sandálias

Havaianas.

Discuto a formação do Partido

os males da monogamia

relembro tiroteios e trepadas

e breve, após o confere,

ainda com as feridas da última visita

na capela,

sonharei com os anjos

pendurados em paus-de-arara

celestes.

 

 

FOICES

 

E fosse o vento

como rajada

fio de foice

rente ao horizonte

cortando espigas e auroras.

E fosse fosco

o vidro que nos separasse

da paisagem

assim semeador

vulto impreciso pelas grades

colher o que?

que fímbria de esperança

que migalhas de posteridade

disputar com os ratos?

 

 

TRILOGIA MACABRA (111 - A Parafernália da Tortura)

 

Nos instrumentos de tortura ainda subsistem, é verdade,

alguns resquícios medievais

 

como cavaletes, palmatórias, chicotes que o moderno design

não conseguiu ainda amenizar

assim como a prepotência, chacotas

cacoetes e sorrisos

que também não mudaram muito.

Mas o restante é funcional

polido metálico

quase austero

algo moderno

com linhas arrojadas

digno de figurar

em um museu do futuro.

 

Portanto,

para o pesar dos velhos carrascos nostálgicos,

não é necessário mais rodas, trações,

fogo lento, azeite fervendo

e outras coisas

mais nojentas e chocantes.

 

Hoje faz-se sofrer a velha dor de sempre

hoje faz-se morrer a velha morte de sempre

com muito maior urbanidade,

sem precisar corar as pessoas bem educadas,

sem proporcionar crises histéricas

nas damas da alta sociedade

sem arrefecer os instintos

desta baixa saciedade.

 

 

ZOOLÓGICO HUMANO

 

o que somos

é algo distante

do que fomos

 

ou pensamos ser.

Veja o mundo:

ele se move

sem nossa interferência

veja a vida:

ela prossegue

sem nossa licença

veja sua amiga:

ela se comove

por outros corpos

que não o seu.

 

Somos simplesmente

o que é mais fácil ser:

lembrança

sentimento fóssil

referência ética

apenas um belo ornamento

para a consciência dos outros.

 

A quem interessar possa:

Estamos abertos à visitação pública

sábados e domingos

das 8 às 17 horas.

 

Favor não jogar amendoim.

 

 

Extraídos de INVENTÁRIO DE CICATRIZES. 3 ed.  São Paulo: Teatro Ruth Escobar; Comitê Brasileiro pela Anistia, 1978.  58 p.

 

quinta-feira, 24 de março de 2022

Milfa Valério

Milfa Valério é paraibana de João Pessoa.



Milfa Araújo Sebadelhe Valério nasceu em João Pessoa (PB), mas está radicada em Alagoinhas, na Bahia, desde 1968. É professora de Língua e Literatura Francesa da Universidade do Estado da Bahia – UEBA, poeta e contista. Publicou os livros Passagem (poemas, 1968) e Como água na pedra (contos, 2004).

Nesses tempos de comunicação implacável é estranho que existam poucas referências ao fazer poético de uma autora como Milfa Valério, mesmo na internet. A temática dos seus poemas aborda mergulhos intimistas, revestidos por um acentuado lirismo. Esperamos recuperação dos seus escritos pela revista ALCR, pelo site de Antônio Miranda e pelo blog Beraderos consiga levar outras luzes para sua poesia.


Fontes: Antônio Miranda e Ambiente de Leitura Carlos Romero

 

ÍCARO

Não contavas com o céu de fogo
E vulcões invisíveis
Querias inventar.

Nem tinhas medo de tua força
Minimizada pelo grande deus
O ar.

Que te parecia na imensidão
Colchão macio de nuvens
Querias só voar.

E foi tanto o querer que te lançaste
Do alto dos teus sonos
E te dilaceraste.


(...)

Profundamente lírica, não sei
A paixão do mergulho
A febre da canção sombria
Talvez por ter pouca densidade
Natureza de chuva, sem magia
Remanso de tristeza lago de saudade.

         Profundamente vaga pobre a definir
A duração exata da inconstância
O salto e volta o nó a esclarecer
Talvez por ver tão seca a realidade
Natureza de nuvem inócua substância
Desfazer-se do eterno vir-a-ser.

         Profundamente tudo no desejo
No casulo do sonho entrincheirada
No raso fundo da razão tardia
Talvez por ser moldada em maresia
Natureza de alga mole, morna
Letárgica aos raios da manhã
Profundamente nada.

 

 

ENIGMA

Enquanto penso, teço enredos, crio imagens
Debruço-me sobre algo que não sei
Para engendrar-lhe um rosto.
Nenhuma ideia! Falsa fluidez, teia oblíqua.
Loucura, ânsia de flagrar no outro
O que tanto busco em mim.

No limite do medo e da coragem, exponho-me.
Abro gavetas travadas, reviro a alma
Desfiro golpes na percepção

Lanterna em punho, pelos becos interiores
Que velam e desvelam minha sombra
O outro. Num garimpo inútil.

Sem jamais encontrar o que faz dele enigma
Que se oferta e que escapa, se concentra
E se dissolve nele mesmo e em mim.

FORA DE ÓRBITA

 

Em que duras aflições me prende
Aquele que não mais vejo
Habitante da ilha dos mistérios

Que me adornava e me adorava como deusa
Derramando em meus ouvidos poemas indecifráveis
Prendendo-me com encantamentos

Aquele cuja ausência me entorpece de saudades
Até do que não vivi
Entranhando em mim para além da carne

Pintura, sulco, marca de fogo
Nesse crisol resisto impertinente
Por uma causa para sempre perdida

Por um nome que não posso mais chamar
Em minhas noites brancas
Em que afetos e afagos vagam sem destino

Astros-veleiros tangidos no cosmos
Fora de órbita
Inevitavelmente a anos-luz da minha galáxia

 

DELÍRIO


Ficou no olhar
Siderado o flagrante
Do alvo impossível
A um passo da mão.

Bailou na festa
Que a alma inventou
Num ínfimo instante
E a vida não.

Marcou lá dentro
E escapou dançante
O sonho suspenso
Abismo e canção.



terça-feira, 15 de março de 2022

Lenilde Freitas

Lenilde Freitas nasceu em em Campina Grande e mais tarde radicou-se em Recife. Sua obra reúne, entre outros, os seguintes títulos: Desvios (1987); Esboço de Eva (1987); Cercanias (1989) a  Corça e o campo (antologia publicada em 2010). A poeta recebeu diversos prêmios, entre eles destacamos “All Nation Poetry Contesf (USA); Prêmio Emílio Moura de Poesia (MG); Prêmio Pasárgada (SP), etc.

Lenilde Freitas é natural de Campina Grande.



 



REVESES DA SORTE

Vida! Não te peço nada
que não me possas dar.

O que eu mais amei
logo tirou-me a sorte.

No dia em que levou
- em vez de me levar -

O que eu chamei: Vida
e o mundo chamou: Morte.




*****



SAUDADE

Saudade é lembrar seja o que for
de belo, na escassez em que se esteja
no pouco acrescentar e até repor
se a alma permitir que assim seja.

Saudade é voar, mesmo em declive
ir longe com o olhar, igual condor
viver do que em nós ainda vive
sem nunca revestir-se do incolor.

E por fim quando tudo for distância
— varandas, redes, luas e telhados —
no pátio iluminado de infância

Se a sombra chegar sem que a ouçamos
com seus passos macios, aveludados
a vida há de ficar no que cantamos.




*****

 

 NO CORAÇÃO DO INVERNO

Um pouco de sol
no coração do inverno
tentei ser aos teus olhos glaciais.
E na magnitude do meu próprio engano
quis a mim mesma responder
a pergunta que jamais.

Ciclones passaram ao largo

— ao largo os temporais.
Mas alguém chegou a tempo 
de ver o inverno passando
de ver minha vida escoando
de ver de ver nada mais.




*****




RIO VERDE



Para melhor compor as madrugadas

também os galos acordavam cedo.
O vento ao passar pela varanda
contava à folhagem um segredo.
A hora era imensa e tão pouca
ó rastro da manhã que já desanda
no tempo, despetalando sim
cada palavra frágil flor de nossa boca.
Os colibris voavam, bailarinos
sobre as sépalas verdes do futuro.
A brisa prenuncia assim os finos
dedos da chuva fria sobre o muro.
Então o relógio para, a vida zera
— desfaz-se a neblina de quimera. 




*****




O MASCATE 


Pelos bairros, pelas ruas

pelos becos do Recife
o homem passava sempre
vendendo quinquilharias.
Fitas, linhas e colchetes
agulhas, elásticos, botões
caixa de grampos, alfinetes.
Brandindo sua matraca
passava dia após dia
gritando alto bem alto
pelas ruas da cidade.
Lá vem o homem passando
pela Rua da Saudade.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Arnaldo Xavier

 

Arnaldo Xavier nasceu em Campina 
Grande-Pb, em 1948. Faleceu em
São Paulo, em 2004.


Arnaldo Xavier é paraibano de Campina Grande. Nascido em 1948 e faleceu prematuramente em 2004. É uma das vozes mais fortes da sua geração e um forte representante da Poesia Negra brasileira. Estreou em poesia através de um projeto do Centro Popular de Cultura – os lendários CPCs. Incursionou pela Poesia Concreta e pelas vanguardas. Mudou-se para São Paulo ainda muito jovem.

O Negro não é feio nem Bonito. O Negro contraria pelo Seu Não-Alinhamento. Pela sua Não-Permissão. O Negro contraria e esta contrariedade é a expressão de incorrespondência às significações adversas manifestadas pelo mundo branco.”

(...)

Hum tempo novo exige uma nova linguagem. E que esta Linguagem seja exatamente o sentido )quizilista(, o gesto (xangótico), a sugestão )ebólica(, a careta (quilombística), a escrita )exusíaca( que o corpo do negro aponta de forma própria irreversível.” (XAVIER, 1986, p. 96)


 

 SENTINELAVANÇADA

           as piranhas corroem
unha por unha
as noites

           as piranhas corroem
ossos por osso
as camas

           as piranhas corroem
olho por olho
as esquinas

         até o último gomo da noite

 

         RITMICASTRAÇÃO OU JURUNANDO
AS ESQÉRCIAS DE UM PUEBLO

             os gestos últimos fluem
em veias negras azuis e mamelucas
pelas fuligens das chaminés
pelas mastigações dos arados
e chocalhos pelos olhares em negros
quadros negros
de um povo julgado a imagem e semelhança
de ovelhas e archanjos bêbados
(num bolero aflito)

         os corpos noturnos e copos taciturnos
em barcas e bocas
de um milharal teso onde as espigas
tentam furar todas as estradas possíveis
e impossíveis
(numa rumba sinistra)

         os sabugos esqueléticos os lápis atônicos
e as nervosas sedes das mãos
veiculam num filete de navalha
(numa guarânia macabra)

               o horizonte como sabre afiado
nas vigas das ovelhas se dos archanjos sadios
fecha o seu abraço ríspido
em plantações de camicases
(num alorcado flamenco)

         a camponesa tristeza choca o grão e o esperma
afoito que floresce o açoite
um filho goro e abafado
pelos afagos de sanguessugas
(numa baladagônica)

         a necessidade de comer gerando a necessidade
de mudanças na memória acéfala
de alguns perplexos homens
(na gralha de uma toada)

         as escondidas danças em gemidos molhados
por trás de pilhas de sal e de fogo
e os panos de uma aurora onde a fome parece
um metalgalho rígido é a única
branca arma branca de faminto
a única tática é a última estratégia
de um passo de tango)

 

         PORTA DEMERGÊNCIA

                            armei ilhável antro
(acessos
circos e cercos)

                   armei policiável pedra (atiçados
campos patas e arames)

                      armei caçável ave
(abertgas
grades e estradas)

                                armei plantável vida
(debaixo
de roxos lençóis
boinas e
capacetes)

                            armei insufocável brado
(nunca
eternos campeões de todos os gemidos)

                                      armei aurorável horizonte
(onde
o sol arriará as calças
e se acocorará para cagar por trás
da moite)

                             armei populações civis
(de
olhos bem abertos sobre
a carne dos juízes
momentâneos)

                       armei (em plenas aflições) funerável motivo
de sombra
(em ideias perplexas e sóis calados
enquanto vive a marsada
em agonias últimas)



Fonte: Antônio Miranda.

 

 

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...