sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Priscilla Cler

 Priscilla Cler nasceu em Belo Horizonte – MG e reside em João Pessoa – PB. É atriz (bacharel em Interpretação Teatral pela UFMG), cantora e professora de canto (licenciada em Música com habilitação em Canto Lírico pela UEMG) e Mestre em Artes pela UFMG. Seu primeiro livro, Poesia Cretina, foi lançado recentemente pela Editora Urutau, integrante da coleção Quem dera o sangue fosse só o da menstruação.



 

 

Não Sabia como Extrair os Sumos da Língua

 

por tempos pensei
que pra extrair os sumos da língua
era necessário
luxuosamente literalizá-la

tentei
rebolando o léxico
e foi língua raspada com lixa
lavada com sapólio
lustrada com lava e lavagem

mas uma língua
ladrilhada de brilhantes
uma língua esfoliada
e esfoliante
não se alerta
não se alaga
não soluciona
não soluça
não revela

língua é feita de laço e papila

o dia em que minha língua sangrou
foi porque tinha um olho nascendo nela

desse delírio sublingual
extraí dela
elixir
plasma
lágrima
e linfa

gatilho gatilho

nada disso era o sumo da língua

o único sumo da língua é saliva
concluí já enlouquecida
e o único jeito de extraí-la
é aquela
boa e velha
lambida.

A Música que eu Sou

 

Chego invariavelmente pontual
Na hora do meu fim
Atrasada no ceder
E adiantada no se dar

O momento exato de me perder é sempre o agora

Confundo velocidade e ritmo
Porque ainda não compreendi
Os fundamentos básicos
Das subdivisões dos meus tempos

[Eles são pequenos lapsos de existência
Que habitam o vão entre os meus pulsos]

Por trás das minhas grades torácicas
Tenho, aprisionado,
Este velho metrônomo quebrado
Que, revoltado,
Vai parando aos poucos
Me ralentando consigo
Pro mais profundo dos adágios

Mas a vida é ad libitum
E sou a única intérprete
Desta composição livre chamada eu

O momento exato de me (re)compor é sempre o agora

Senti voltar a pulsação do meu peito allegro
E me vi capaz
De recuperar cada um dos tempos
Que um dia me foram rubatos

Desde então
Não fui mais música no tempo;
Me tornei música no espaço.

 

Passaralha

Manhã em tempestade de sol
Passarinhos que gorjeiam palavrões
Mar sereno e calmo, bom pra afogar-se
E o livro engraçado de poemas que dá vontade de morrer
Isso tudo parece bem doído e dramático e triste e pesadão
Mas tá tudo certo
É só uma segunda-feira pós feriado
E todos
– salvo os que não sobreviverão –
seremos atravessados por ela

Eu sou um desses passarinhos
Acordada e pousada no fio de mais alta tensão
Uma espécie de bem-te-vi do mal
Cantando linda aguda afinadamente:

– Vai tomar no cu! Vai tomar no cu!

 

Movimento

 

Amar, desamar
Sentir coisas de tantas naturezas
E deixar de senti-las
Sentir as entranhas se revirarem
E senti-las se reorganizando

O corpo sempre nesse movimento

Em que o coração e o cu se confundem

 

A Música Bate no Tímpano

 

a música bate no tímpano
do tímpano explode o choque
chega no pé, pula pro peito
faz craquelar a capa do coração;
eu fico muda
(coisa que nunca acontece)
e minha cara congela:
dois olhos fritos
profundamente mexidos
os cantos da boca
apontando pra baixo
o balanço da cabeça
(as)sentindo
sem saída.

numa hora dessas
eu não sei fazer mais nada

 

Corpovoz

 

braço prolongado no espaço
varador de kinesfera
a parte do meu corpo que me projeta mais longe

mão tem voz
peito tem voz
olho tem voz

voz é arma
faca revólver bomba
voz é imagem
metáfora sólida e lombra

EU ME DEFENDO COM VOZ E VERDADE
voz é jeito fortíssimo
de chicotear o opressor

voz não esconde nada
é tímida nudez

voz se engole
voz se revolve
voz se lê

voz
mesmo em silêncio
revela
voz é oráculo
da alma
a tela

 

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Lúcio Lins

 Lúcio Lins (1948/2005) nasceu em João Pessoa. Formou-se em Ciências Jurídicas e foi funcionário da UFPB. Publicou “Lado que cavo/que covas”(1982); “As lãs da insônia” (1991); “Perdidos astrolábios” (1999). Publicou seus poemas no Correio das Artes, Revista Usina, Revista Ler, Suplemento de Minas, entre outros.




Nos anos 70 integrou o Movimento Jaguaribe Carne, ao lado de Pedro Osmar, Paulo Ró, Chico Cesar e outros artistas. Nos anos 80 fundou o Bar Travessia que movimentou a cena cultural da cidade. Teve parcerias musicais com Byaya, Mestre Fuba, Chico Cesar, Zé Wagner e Adeildo Vieira.

 

 

vestindo o poema

 

meu exercício
de voar
é pousar
na imaginação
das asas

é fazer ninho
com as palavras


 

a reforma


faço poemas
reformando a casa

sento cerâmica
no papel
e os pedreiros
sentam palavras
na sala

sou eu
que estou em silêncio
são eles
que têm a fala

 

 

 

delírio de gari


os urubus
são aves
do paraíso

os anjos
são urubus
travestidos

(dei-me ao luxo
de catar isso)

 

 

 

fora do circo


domar a fera
é mais que o espetáculo
de levar ao público
as garras já domadas

domar-se a fera
é não entrar na jaula

 

 

 

imagens


o T de tv:
antena externa

o V de tv:
antena interna

(a imagem é minha)

 

 

 

um itinerário de leituras


a traça
tem algo de erudito
e uma preferência
pelos mais antigos

de muitos
conceitos de amor
a traça se alimentou
palavra por palavra

demais
lições de vida
pela traça foram lidas
página por página

a traça
tem algo de cético
devora os textos
e não vive dos inéditos





duas margens


quando o tempo
me cobrir os céus
com a anágua suja
da tua espera
e teus lábios
forem duas margens
um
gritando calmaria
outro
clamando tempestade
eu voltarei
de corpo e barco
e por ti
seguirei minha viagem

navegarei
entre teus braços
e segredos
eu
serei teu búzio
tu
serás o meu degredo


 



Cabo Branco


extremo Cabo Branco
estranho trampolim
ao contemplar o Atlântico
o mar mergulha em mim

 

 

 

 

 

memória das águas



sei do mar
do seu sal
suas palavras naus
e toda paisagem
uma vista de Portugal

sei do mar
do seu longe
sua história mangue
e o marulho das ondas
uma linguagem lusitana

sei do mar
que o mar
ainda é um silêncio
e a palavra mar
um oceano de palavras






bodas de ouro


passaram-se
os anos
e eles ainda
passam
um pelo outro

quanto são estranhos

 

 

 

história flutuante


não tenho horizontes
tenho sonhos à vela
e a tempestade da história

não tenho mapas
tenho cartas anônimas
e os gritos de seus náufragos

não tenho mares
tenho a garganta seca
e as palavras navegáveis


terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Aderaldo Luciano

 Aderaldo Luciano nasceu em Areia-Pb. Pesquisa a poesia e a música dos povos brasileiros. Publicou “Engenhos, estradas, sinas”, “Era um espinho no olho e aFlor da lira no peito”, “O nome do cantador”, “Quero morrer na caatinga e “Apontamentos para uma historia crítica do cordel brasileiro”.



 

****
As noites dos solitários
São longas, profundas, frias.
Da mesma forma, seus dias
Se perdem nos campanários.
Mesmo os códigos binários
Das redes de informação
São buracos de emoção,
Ratoeiras nas esquinas,
Cadafalsos, guilhotinas.
O Mundo é Grande Ilusão

****

 



****
Sou o barro dos oleiros

e o fogo que queima o barro
Sou o carro sobre as rodas
e guio as rodas do carro
enquanto o mundo se perde
aos meus achados me agarro!

****




****

A quem adora pastéis,
A quem quer caldo de cana,
A quem maldiz a semana,
A quem leiloa os anéis,
A quem engana os fiéis,
A quem manipula a massa,
A quem devora linhaça,
A quem não lê a receita.
A quem sofrer de maleita:
Se livre dessa bagaça!

****


****

A quem pediu sem querer,
A quem deu sem ter certeza,
A quem procura moleza,
A quem buscou se perder,
A quem fala sem dizer,
A quem tá preso à mordaça,
A quem tenta e só fracassa,
A quem quer ser cozinheiro.
A quem só pensa em dinheiro:
Se livre dessa bagaça!

****






****

Plantei um pé de liamba
No jardim que vou sonhar
Quem mora no jardim, sonha
Quem não sonha, quer morar
Fica pra cá de Los Yungas,
Mas de Alfenas pra lá
Mesma trilha da ayahuasca,
Mais do que maracujá,
Aproximada ao peiote,
Vizinha do juremá
É Liamba de Caboclo,
Meu coração milenar.
Olhei um dia em suas flores
Nelas vi um mangangá,
Abelhas, vespas, formigas
Gostam do seu farfalhar
Ela se aventura ao céu,
Também gosta de hibernar
Vezes fica só o caule,
Porém num pestanejar
Abre-se em pequenas mãos,
Cumpre-se em belo arvorar
Plantei um pé de liamba
Sagrada no meu gongá.

****


 


 

****

Quando canto, o poema se alvoroça
A viola se esquece de ser ela.
Outra alma, de mim, logo se apossa
Outra vida escancara uma janela
Eu me vejo habitando outra palhoça
Outra Mãe, ao meu lado, senta e vela
Para além dos limites conhecidos
Eu visito ancestrais já esquecidos.

****

 

 

****

Caminhávamos, noturnos,
Apontando a Trilha da Anta.
Todo o silêncio nos corpos,
Sonidos, penas, gargantas.
Constelações levantadas
(faíscas, lampejos, tranças)
Um vento fino assoprando
Os galhos finos das plantas.
As folhas dançavam leves
Nervuras, palmas, membranas.
O coração dos planetas
Pulsando, pontas de lanças
Nos dando ordens expressas,
Como antiga governanta
De um castelo abandonado
Em Carnaúba dos Dantas.
Sob o céu de Jericó,
Vencedor de léguas brandas,
Nos levando a Catolé,
Onde o ferro se aciranda.
Nunca mais aquele céu
Me veio, ocasião santa.
Eu e a Noite caminhando,
Imersos na Trilha da Anta.

****

 

 

João Damasco Braga

 João Damasco Mangueira Braga nasceu em Cajazeiras-Pb, Reside em Campina Grande onde é professor aposentado do Curso de Engenharia Elétrica da UFPB. Graduado também em Letras pela UFPb, dedica-se atualmente à Literatura. Publicou o livro Rabo de Cutia.



RASGA MORTALHA


A rasga-mortalha grasnava:
sinal ruim, morte na casa.
Instaurava-se o medo,
que era falso, não era medo,
pois lá pela quarta vez
a rasga-mortalha já estava
desmoralizada.




BAGAÇOS
                   Para Adeildo Pereira


A cana chupa o homem.

Doçura,
fibra e brancura,
por entre os nós,
por trás da casca,
da pele escura.

O homem chupa
           a cana
chupa
           o homem.



PREDADOR

O urso negro era belo.
Senhor de implícitos limites
na branca planície,
acomodou-se na gruta
presumindo instintivamente
a segurança do abrigo.

Espreitava-o com fome
um urso cinzento,
na afoiteza bruta
de violar o domínio alheio,
no desespero de ser
acossado por outros
mamíferos
plantígrados,
predadores insensíveis
- homens sem cor.



IMAGEM E
SEMELHANÇA


A Ideia do crepúsculo
A Criadora Palavra
O crepúsculo

A Ideia do homem
A criadora palavra

O homem

A ideia do poema
A palavra crepúsculo
Um poema

Semelhança e imagem.




VIDA


Sylvia Plath foi dormir cedo,
mas um poema acabado
não desaparece.




OUTRO RECRUTA
                                  Para Edilson Amorim


lia Oswald
e disse também à namorada:
Se morrer, venho te ouvir cantar.
Sobreviveu à guerra,
conheceu uma gringa
e ficou morando por lá.



ENCONTRO


Mergulhar no poema
deixar-me lavar.

Pelo rio do teu corpo,
deixar-me levar.

No vau do poema
do teu corpo,
de mim para mim,
sem retorno passar.









sábado, 28 de janeiro de 2023

Aurélio Aquino

Aurélio Aquino nasceu e vive em João Pessoa, na Paraíba. Publicou Versos de dizer nem sempre e Da vida em desalinho, entre outros.

 


 

 

Das ruas de mim


único
tudo me define
outro

sou assim
alheio

tudo de mim mesmo
e pouco

é que me sobra
a compreensão
de parecer-me vão
quando não pulsa
no cérebro
o coração

 

 

 

 

 

Dos ganhos e das perdas em singelo enredo

 

ganho
o que perco

o que resta em mim
é apenas o que meço

tudo que não seja tanto
por ser de menos
o que prezo

a vida enfim
é exatamente
tudo que o peito
grava na gente

não há avesso
naquilo que se sente

 

 

Pequena digressão com laivos de poema

 

sósia de mim
me desconheço
nos outros tantos eus
em que me teço

é que viver
é só um jeito
de trazer multidões
dentro do peito

 

 

Pequena alusão aos tempos do espaço e a perene desavença humana

O infinito

 

não é só espaço
há um tempo embutido
em seu descampado
depois de si
traz outros infinitos
que desabotoam a razão
e todos os sentidos
é como parecer um mutirão
de todos os destinos
por decretar-se avulso
apesar de ser contínuo.

 

 

Etária constatação em vagas

 

assim em riste
como cicatriz do tempo
a vida sempre gira
como um cata-vento
as voltas que dá em si
nas curvas do pensamento
a vontade da razão
espalhada nos atos
inventa os ventos que pode
esparramada nos braços
o tempo é só um distrato
da eternidade do espaço

 

 

 

Elza em jornada

  

Elza tinha na voz
como uma revoada
vinte mil pássaros
navegando suas asas
Elza tinha na boca
um comício itinerante
no derramar-se humana
em palavras e canto
Elza dormia sua negritude
em futuros acalantos

 

 

Da coletiva razão do povo

 

a construção da vida
e dessa condição humana
são atos sempre de todos
são fatos de grave chama
nada das gentes
dá-se como exclusivo
tudo é pleno do povo
nas ondas de seus gritos
os que acordem o mundo
os que chamem o infinito
tudo de dizê-lo tanto
é tê-lo sempre coletivo

 

 

Sapateiro em militância

 

 o sapateiro
engraxando a vida
dava-se ao tempo
como comunista
e nesse ímpeto
ao ter-se liberto
construía sapatos
e alguns panfletos
Chico do Baita
inventava em tudo
as andaduras fartas
dos calçados do futuro

 

 

Siá Luzia em revista

 

 

Siá Luzia
quando tricotava
tangia todos sonhos
nas agulhas que usava
seus olhos eram as vias
dessa onírica viagem
trançada na solidão
que invadia suas faces
Siá Luzia era um grito mudo
com todos seus disfarces

 

 

 

 

 

 


quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Marcantonio Costa

 

Marcantonio Costa nasceu no Rio de Janeiro e vive em João Pessoa, na Paraíba. É artista plástico e escreve poemas. Ainda inédito em livro.




 

 

 (***)

No momento em que todo objeto
é qual pássaro morto,
e de extrema concentração em
ser
porto,
ao qual tudo o que se atraca
não está de retorno,
e no permanecer consiste,
aceno um lenço ao zarpar
da pergunta
se o sempre-distante
realmente existe.
No momento em que todo objeto
é qual pássaro morto,
e de extrema concentração em
ser
porto,
ao qual tudo o que se atraca
não está de retorno,
e no permanecer consiste,
aceno um lenço ao zarpar
da pergunta
se o sempre-distante
realmente existe.

  

(***)

 

 

Um anjo sombrio
acompanha os teus dias,
como um planeta em órbita
ao redor do sol que tu és.
Anjo que não guarda a ti,
mas o teu inexorável futuro.
Foi destacado de uma legião
- alma racional do mundo -
e lotado numa repartição
do teu cérebro.
Não saberias dizer
se ele veio do longínquo,
um asteroide que se avizinhou,
ou foi aglomerado de partículas
que de ti se desprenderam.
Certamente esqueceste
que ele nem sempre esteve
ao teu lado,
e apenas se prontificou
quando ganhaste consciência
da tua própria existência.
E desde então sonhas em vigília
castrar aquelas sinistras asas.

 

 

(***)




Qual o teu espaço, poeta?
Que dimensões ocupas?
Talvez a dum dedo vazio
entre os cinco de uma luva,
ou então inflado, perpendicular
aos outros esvaziados,
dirigindo ao mundo um aceno
de dedo revoltado ou obsceno.

 

 

(***)

 

INSUFICIENTE

 

 

Todo o léxico é pouco:
não é bastante a oceânica
língua
para inundar o silêncio da
planície.
Pouco.

 

 

(***)

 

 

FÍSICA

 

 

Gostava de aplicar
a expressão vasos comunicantes
aos nossos olhos,
nossos ouvidos,
nossos sorrisos miscíveis
e ao nível comum de nós
à altura das nossas bocas.

 

 

(***)



Uns versos curtos,
para um fácil decolar da página,
menor superfície de contato
e aderência.
E nem assim eles flutuam.

 

 

(***)

 

EXTRAVIO

 

 

Do grande rebanho
dum dia triste,
se desgarraram
muitos minutos de alegria,
mas o pastor carrancudo
e desleixado
nem os percebeu fugir.

 

 

(***)

 

 

Eu me retiro do poema,
saio pelos fundos,
dou a volta
e fico de fora,
olhando da vidraça
embaçada pela minha
respiração.
Não há de ser indiscrição.

 

 

(***)

 

 

Sábado
ainda pede sapatos,
algum desfilar.

Domingo,
pés descalços
para o ar.
Mas, ainda que
desocupados,
não há quem os faça
levitar.

 

 

 

(***)

 

 

NOTIFICAÇÕES

 

As minhas unhas
Estão retroagindo,
Os meus cabelos
Tornam à origem.
Os amigos o notificam
Entre si.

O espelho me retém
Num amanhecer.
Sinto o ar puro
Espalhando o sal
Recolhido às horas,
A minha nuca recebe
O sol futuro.

Meus pensamentos beijam
As duas faces do dia.
Os lírios me doam
Todo o seu vestuário.
A corte de Salomão
O notifica.

Meus pés alvejantes
Purificam os esgotos.
No coração engendro
Rotor de helicóptero.
Constato que as nuvens
Têm piso dourado.

Meus olhos superam
A miopia e abrem
As conchas distantes,
Aferem os perímetros
Propícios às miragens,
Os viajantes urbanos
O notificam.

Minhas palavras agora
Calçam patins.
Os dias do calendário
Disparam feitos gametas.
As linhas das minhas
Palmas hoje são espirais,
E as quiromantes tontas
O notificam.

 

 

(***)

 

 

APORTE

 

Forneço subsídios ao silêncio,
Não o medo, mas a perplexidade,
Essa cama que flutua entre as auroras.

Mas não entendo teu mutismo,
O crepúsculo no teu palato
Quando fechas a boca, o vácuo,
Ausência parcial de sensibilidade da língua:
Perdeu-se o gosto das palavras,
O salino, o adocicado, o cítrico, o amargo.

No entanto, comunicamos,
A pele é que é impelida
A trair a ruptura do verbo (nervo crítico),
E o corpo captura o desejo omitido:
Mal o teu púbis se insinua, aflito
Algo em mim se levanta, grua,
Então se enraíza um diálogo acima do silêncio
E, no mais, temos dito.



(***)

 

 

LUMINOSA

 

Anoitece,
e tal como suponho aconteça
na vida pessoal,
os planos distantes
são os primeiros a desaparecer
até a resistente nitidez
do foco central
onde se finca a aguda pata
do compasso existencial,


e a circunferência das sombras
se retrai,
até o ponto onde se grita:
luz! Mais luz!
A sobrecarga impossível,
antes da queima do circuito 

e da escuridão total.


(***)

 

 

SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO

 

Ao ouvir o som do meu coração
Sinto-me especialista em criptografia,
Intruso, espião em território estrangeiro,
País governado ditatorialmente
Pela vida.


(***)

 

 

 CRÔNICA

 

Um velhinho passa
sob a minha janela,
camisa surrada,
calça jeans, sandálias
e boné.


Claudica.


E me enterneço,
como preconceito
de que está cansado
de levar sua história

anônima, banal
e pesada,
a pé.

 

 

(***)

 

 

OBJETOS SUJEITOS AO AFETO

 

1-

 

Os óculos
ao lado
da caixa de fósforos,
casual epigrama:

ver sempre depende
de algum tipo de chama.

 

2-

 

Livro de poesia
e garrafa de vinho:
arranjo dionisíaco,
ethos etílico.

 

3-

 

Folhas brancas
para desenho
sob o bloco de notas:
onde larguei a chave
da porta?

 

4-

 

Café e açúcar
aguardam
o encontro amoroso.

 

Xícara emborcada,
a alcoviteira.

 

4-

 

Um livro fechado: Platão.
Por enquanto, apenas
um sólido geométrico
no mundo das aparências.
Ou potência que aguarda
um ato.

 

6

 

O relógio digital de mesa,
objeto mutante:
a cada segundo
novo semblante.

 

7-

 

Laranjas,
bananas,
mangas:

 

o sabor inocente
ainda
detento
sob as cascas.

 

8-

 

O cinzeiro: túmulo.
Nenhuma fênix
borralheira.

 

9-

 

As roupas
no varal –
olhar é despir
previsões.

 

10-

 

Sapatos empoeirados
e hirtos,
exaustos de andar
em círculos.

 

11-

 

Caixas velhas,
velhas caixas:
o que fazer com isso?

 

Jogar o seu oco
(nicho)
no lixo.

 

12-

 

Falta fotografia,
no porta-retratos:
esclerótica retangular
sem a íris. E
a menina dos olhos.


 

COR MENTAL

 

Uma cor se expande sobre outra
Na permeabilidade da fala,


Mas não tão velozmente como
Quando são apenas pensadas
Na ausência de superfícies:
Auréolas impermanentes, ralas.



(***)

 

 

O CONHECIDO

 

Chega o momento,
Não sei se natural
Ou propiciado pelo teu arbítrio,
Em que nada é surpreendente.


E mesmo que vejas coisa inusitada,
Ela logo terá formal identidade
Por efeito de alguma remota analogia.

Pois tu já terás preenchido
Teu conceitual álbum de figurinhas,

Somente revisões

E a sobra das trocas
Preencherão as importunas entrelinhas.

 

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...