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Zila Mamede nasceu em 1928, em Nova Palmeira-Pb. |
Zila
Mamede nasceu em Nova Palmeira, na Paraíba, em 1928. Estudou em Currais Novos-RN,
mas foi em Natal onde viveu a maior parte da sua vida e onde foi reconhecida enquanto
bibliotecária, técnica em contabilidade, professora e escritora.
Morreu em 1985. Publicou livros como Herança e Navegos - este último uma coletânea dos livros Rosa de Pedra, Salinas, O Arado, Exercício da Palavra e um inédito chamado Corpo a Corpo.
Escreveu estudos bibliográficos sobre Câmara Cascudo e João Cabral de Melo Neto que a considerava uma das maiores poetas brasileiras.
Sobre Zila Mamede escreve Nei Leandro de Castro: "O Arado é um momento alto não só na poesia de Zila Mamede. É um dos momentos mais altos da poesia brasileira. A poeta toma a lavra da palavra, faz do verso o instrumento com que molda - artista, artesã, moendeira, oleira - os objetos da poesia."
POEMAS
A PONTE
Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
de pedra e de aço
onde não
permaneço
-
passo.
ARADO
Arado cultivadeira
rompe veios, morde chão
Ai uns olhos afiados
rasgando meu coração.
Arado dentes enxadas
Lavancando capoeiras
Mil prometimentos, juras
Faladas, reverdadeiras?
Arado ara picoteira
sega relha amanhamento,
me desata desse amor
ternura torturamento.
BANHO (rural)
De cabaça na mão, céu nos cabelos
à tarde era que a moça desertava
dos arenzés de alcova. Caminhando
um passo brando pelas roças ia
nas vingas nem tocando; reesmagava
na areia os próprios passos, tinha o rio
com margens engolidas por tabocas,
feito mais de abandono que de estrada
e muito mais de estrada que de rio
onde em cacimba e lodo se assentava
água salobre rasa. Salitroso
era o também caminho da cacimba
e mais: o salitroso era deserto.
A moça ali perdia-se, afundava-se
enchendo o vasilhame, aventurava
por longo capinzal, cantarolando:
desfibrava os cabelos, a rodilha
e seus vestidos, presos nos tapumes
velando vales, curvas e ravinas
(a rosa de seu ventre, sóis no busto)
libertas nesse banho vesperal.
Moldava-se em sabão, estremecida,
cada vez que dos ombros escorrendo
o frio dágua era carícia antiga.
Secava-se no vento, recolhia
só noite e essências, mansa carregando-as
na morna geografia de seu corpo.
Depois, voltava lentamente os rastos
em deriva à cacimba, se encontrava
nas águas: infinita, liquefeita.
Então era a moça regressava
tendo nos olhos cânticos e aromas
apreendidos no entardecer rural.
ELEGIA
Não
retornei aos caminhos
que me
trouxeram do mar.
Sinto-me
brancos desertos
onde as
dunas me abrasando
tarjam
meus olhos de sal
dum
pranto nunca chorado,
dum
terror que nunca vi.
Vivo hoje
areias ardentes
sonhando
praias perdidas
com
levianos marujos
brincando
de se afogar,
com
rochedos e enseadas
sentindo
afagos do mar.
Tudo
perdi no retorno,
tudo
ficou lá no mar:
arrancaram-me
das ondas
onde
nasci a vagar,
desmancharam
meus caminhos
– os
inventados no mar:
depois,
secaram meus braços
para eu
não mais velejar.
Meus
pensamentos de espumas,
meus
peixes e meu luar,
de tudo
fui despojada
(até das
fúrias do mar),
porque já
não sou areias,
areias
soltas de mar.
Transformaram-me
em desertos,
ouço meus
dedos gritando
vejo-me
rouca de sede
das leves
águas do mar.
Nem
descubro mais caminhos,
já nem
sei também remar:
morreram
meus marinheiros,
minha
alma, deixei no mar.
Pudessem
meus olhos vagos
ser
ostras, rochas, luar,
ficariam
como as algas
morando
sempre no mar.
Que
amargura em ser desertos!
Meu rosto
a queimar, queimar,
meus
olhos se desmanchando
–
roubados foram do mar.
No
infinito me consumo:
acaba-se
o pensamento.
No
navegante que fui
sinto a
vida se calar.
Meus
antigos horizontes,
navios
meus destroçados,
meus
mares de navegar,
levai-me
desses desertos,
deitai-me
nas ondas mansas,
plantai
meu corpo no mar.
Lá,
viverei como as brisas.
Lá, serei
pura como o ar.
Nunca
serei nessas terras,
que só
existo no mar.
RETRATO
Me
lembrava da menina
escavacando
o chão agreste,
me
lembrava do menino
carregando
melancias.
Em que
terras desembocam
esses
talos de crianças
mais
finos que as maravalhas,
mais
fortes que a ventania?
Dois pés
descobriram casa,
multiplicaram-se
em hastes
– são
cabeleiras de trigo
dos
moinhos de Van-Gogh.
A sombra
dos dois irmãos
repartiu-se
entre os veleiros:
seu tronco
desarvorado
virou
estrelas no mar.