terça-feira, 25 de abril de 2023

Eugênia Correia

 Eugênia Correia nasceu em Teresina-PI, residiu 15 anos em João Pessoa e atualmente mora em São Paulo. Professora universitária aposentada pela UFPB, é psicóloga e fez doutorado na UnB desenvolvendo um método terapêutico para crianças e adolescentes em situação de rua. Sua área de trabalho é a interface Arte/Psicanálise. Em Paris fez curso no museu do Louvre sobre a questão do espaço cênico em exposições e visitas guiadas. Multiartista, Eugênia Correia possui dois Eps disponíeis no Youtube (‘Eugênia trilhas de apartamento’ e ‘Eugênia Cirandas do silêncio’), com música e letra da sua autoria. Como escritora tem participado de coletâneas do Mulherio das Letras e está escrevendo um texto para teatro sobre o tema “alienação parental”.


Dia mundial da poesia

Frente à paisagem dispersa e muda
Faz-se um oráculo
- nuvens, ruínas, pássaros -
Tornam-se respostas profundas
Como um trovão
Faz-se um poema
- chuva, poeira, vôo -
Desmancham-se as perguntas
que pousam no chão. *****
Um frevo meu

Quando o pé tocar o chão
Tanto faz se é um frevo um rock ou é
cantiga de São João
Quando o chão tocar o pé
Ouça bem seu coração
Firme no acorde
Encare a lava que vem
Desse vulcão *****
O pombo - nosso novo animal totêmico - já anunciado por Freud em Totem e tabu, por Lacan no estádio do espelho, por Levy-Strauss nas relações de parentesco totêmico , capazes de conceder voleio a quem render homenagens a seu clã, anatomicamente geodésico, elegante e engraçado. O grande L flutuando em nossa memória, isso ninguém tira.
Mesmo breve o voleio
Ressoa em nosso chão
Inteiro

***** MUDANÇA A janela encontra outra parede A porta não se importa mais com o chão Os quartos asfixiados de ar soltam-se pela paisagem O dentro e o fora juntos, compactos, no caminhão *****
FIGURINO A gota se despe da pele E sua transparência reluz Tudo que vive se crê rei E por isso Nu

Lizziane Azevedo

Lizziane Negromonte Azevedo nasceu em Campina Grande-Pb. É contista de grande talento tendo publicado o livro A Vírgula e Outros Pontos, entre outros. É advogada e escritora. Atualmente tem apresentado sua produção de haicais e minicontos na sua conta do Instagram.





Fatiando as horas
o sino da igreja toca.
Sempre afiado.




*****




Cada caixa tem
um pedacinho da casa.
Dia de mudança.



*****




Ondinhas quebram
na barriga da mamãe.
E o bebê nada.




*****




O grilo não cansa
canta, canta, canta, canta.
Oculto num canto.




*****



Foi longe demais
a folhinha ressecada.
Rajadas de outono.

Vernaide Wanderley

Vernaide Wanderlei nasceu em Patos-Pb e vive e Recife. Exerceu as funções de pesquisadora social na Fundação Joaquim Nabuco - FUNDAJ. Foi uma das responsáveis pela reabertura da União Brasileira de Escritores - PE. Publicou os livros de  poemas Tatuagem e Litorgia entre outros.



ABRIR CLAREIRAS EM DESERTOS

Lembro dos cachos anelando às tardes
dos risos antecipando verde nos outeiros
da menina lúdica acordando paqueviras.
Vejo-a escrevendo versos sem viço
negando visto nas canções de outrora
querendo abrir clareiras em manhãs desertas.
Se pudesse lhe daria minha dor vivida
(dor de amor que já partiu em julho)
para não perder a fé que desabrocha
espalhando óleos no seu rosto ensombrado.
O amor que finda nos definha em mágoa
para explodir petúnias na paixão que chega. *****
HARMONIA DOS SONS
O excesso de sons distorce
a noite lá fora...
As vidraças esquecem
de repassar ecos de luz
silêncio e música para ela
que enxuga o olho esquerdo
lugar de escorrer misturas
lágrima e rímel.
Lembrou rosto de criança
depois de chorar e soluçar
em descompasso, sem fala,
choro nos soluços cortados
pela dor, malcriação,
... carência disfarçada, nudez. *****
JULGAMENTO DE LAURA
No terminal do cais,
as pitangas e as carambolas
encantam-se em resinas,
lacas de sóis sobre sobrados, putas,
mendigos e o recinto solene das togas.
O vai e volta de meias e ligas nacaradas
confunde-se com o preto de cetim
e as leis unívocas de homens e de tomos.
Laura é ofertório e súplica,
puta-menina de rios e de punhais,
peitos que mais se adolescentam
a cada sentença e perfuram
sua própria alma e a da cidade
- um fardo indefensável de dias comuns.
O vai e volta das meias nacaradas
aquieta-se e chora sobre ligas,
sobre os códigos, os homens, as togas
e sobre o esquife do cafetão. *****
DE TERRA E DE AFAGO

Agredi o mundo
com punhais
sem ponta,
feri pulsos
queimei a alma
cuspi a raiva
e como um gato cego
enrosquei-me
nos pés da cama
querendo o afago
de gestos loucos. *****
SEMANAS DE COLHEITA

Uma alegria rolou
sobre os torçais do cinto,
alegoria das festas profanas
inundando meu colo de esperança.
Guardemos a chama
desta quarta feira e a dos grãos
que caírem agora no sazonado tempo,
selecionado tempo,
para que todos encham seus bornais.
Passo a ter excessivo zelo
ao tocar as peças da escrivaninha
seus papéis
e envelopes não abertos.
Porque é preciso cultivar um rosto
que enfrente novamente as ruas
saber que finda a estação de escolha
e que dúvidas seguirão com nós.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Geraldo Vandré

Geraldo Pedrosa de Araújo Alves (Geraldo Vandré) nasceu em João Pessoa-Pb e reside em Petrópolis-RJ. É cantor, compositor, advogado e poeta. Quando saiu do país por ocasião do AI5 recebia o mais alto cachê pago para um artista no Brasil. Deixou o país no auge da carreira e somente voltou a cantar por aqui 50 anos após, em recital realizado com a Orquestra Sinfônica da Paraíba na Sala de Concertos José Siqueira em João Pessoa. Lançou alguns álbuns que se tornaram históricos, a exemplo de "Das terras de Benvirá". Possui uma vasta obra ainda inédita e um "Poema Sinfônico" ainda em construção. O blog Gota Serena publica aqui o poema que deu origem a um dos seus maiores sucessos, a canção "Disparada". Também outros poemas do livro "Cantos Intermediários de Benvirá", lançado em 1973 durante seu exílio no Chile. Em 2018 o Governo do Estado da Paraíba através da SECULT-PB e da Editora A União, publicou a primeira e única edição brasileira que não disponível para venda. Todos os exemplares encontram-se com o autor. Para esta edição Vandré mudou o título do livro para "Poética".





DISPARADA

“E assim se passaram seis ou seis anos e meio,
direitinho, desse jeito,
sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma,
porque esta é uma estória
inventada e não um caso acontecido não
senhor.”

                            J. Guimarães Rosa



Prólogo
Há sempre muitas estórias
e muita fé pra comprar
os sonhos que elas sugerem,
pra salvar ou pra enganar;
mas essa, vou prevenindo:
Cantando, chorando ou rindo,
depende só de quem ouve;
foi inventada, não houve;
Não vai enganar ninguém,
pois não trata de mal
e nem de bem;
é de deixar correr livre,
sem peias e sem cercados,
os sonhos que a gente vive,
em tempos tão mal parados.



O campo

Nos largos campos gerais

de Minas, do Mato Grosso,
de São Paulo, de Goiás,
Catarina e Paraná,
Rio Grande, grande ou mais,
existe uma paz contida,
que passa do campo ao gado
e do gado vem pra gente;
quase em paz a gente fica;
e estando a gente no campo,
em vez de desesperado,
mais ele pacifica.
Cercados na mesma terra,
o boi muge, o povo canta,
e na paz desses gerais,
nem uma mosca se espanta.
É belo, é belo, não nego.



A boiada

Há quietude nos campos e nos homens; Nos campos porque são largos; tão largos que em vão consomem todos os caminhos por abrir, todos os passos, laços e abraços, meios e anseios dos homens; nos homens porque são fracos; não por vontade, por marcos há muito no chão plantados, de interesses velados; velados mas fortes; fortes e bem fincados como a paz contada em versos, nas léguas dos mil impressos, feitos para consumo geral. Mas um dia, a quietude geral dos campos gerais, foi quebrada: que até hoje é procurado, e nunca foi encontrado e nem será, no verde mais amplo do campo, deu partida; feriu mais fundo a ferida de uma rês que era o cabeça, a segurança e o guia da mais tranquila boiada que naquele tempo havia. Toda paz foi alterada pela dor mal comportada da boiada desfileirada, estourada.



O caipira

Mas os campos gerais
são largos
e, por igual, consomem
o fraco anseio do homem
e, do gado, a disparada.
A quietude sempre volta
e voltou.
Encontrou uma figura quase humana
que de humana parecia
só chapéu, laço, as esporas
e o lugar na montaria,
do vaqueiro do outro dia.
A busca do gado solto,
a sela lembrando o morto,
a poeira ainda no corpo,
sua vida de trabalho,
chamada vida vadia,
no mesmo impresso
em que antes, calma
era poesia,
cercam, segam, como ao gado,
sitiado num quadrado de aveloz,
sua fé, sua alegria.
Caipira, feito peão,
olha de frente o sertão.
Olha o gado, olha o cercado,
sente a própria solidão.



Olha de perto o cavalo,
e quanto mais perto certa,
a nova e clara visão:
o cavalo é sempre o mesmo,
a sela também, e o gibão;
quem muda sempre é o vaqueiro,
por qualquer jeito e razão;
se estoura a boiada
foge, ou morre,
não tem perdão.
Jeca por impaludismo,
caipira por tradição,
tabaréu por anedota,
matuto por servidão,
dá-se contas, de repente,
que também pode ser gente;
toma o cavalo nos freios;
é seu, de forças e arreios;
porque nele está montado
e por ele é bem usado;


e mais:
não tem dono o sertão.
Grita alto e sem temores,
virei gente, meus senhores,
pra morrer morro por mim
e por minha condição.
Na mente tenho somente,
uma fé e uma razão:
Libertar todo este campo,
correndo todo sertão;
numa mão, laço e chicote,
na outra, os marcos do chão.
***** CONFISSÃO Toma este canto, companheiro; e em teus ombros, em teus braços, e em teu peito, no teu exato jeito, prossegue e dá sentido ao canto com teu feito. Eu mais não pude que cantar; e não basta companheiro, o canto e o só sonhar. Por isso, tanto, eu te confesso e me garanto: se não fossem os teus ombros e os teus braços e o teu peito e o poder que só tu tens de transformar, eu não havia de cantar. ***** OLHA DE FRENTE O SERTÃO Jesuíno de Maria lá da serra do Capão, morreu, ao romper do dia, de tocaia e traição; e o matador nem sabia, do que fazia, a razão; no feito foi só mandado, no fubá, mão de pilão. ***** REFLEXÃO Posso internar-me singularmente, nos mistérios de uma solidão que compete, exclusivamente, a cada um em separado. Porém, decididamente não quero e aí está, o motivo claro do poema inverso que vivo a escrever, e que me dáamparo pra poder dizer que o eu não existe sem você. ***** AOS QUE VÃO COMIGO E COM QUEM VOU FICAR Vou-me embora, agora, e se eu não voltar não deixem tristeza tomar meu lugar; que no mundo, afora, sempre vou lembrar, daqui, desta hora, quando eu cantar. E se os amigos que aqui vão ficar, quiserem, mesmo, e de mim precisar, guardem desde agora, o que eu posso dar. Preservem consigo o que eu vou levar; este amor, antigo, que eu pude encontrar; que vocês mantinham sem saber negar. E aos muitos amigos que aqui vão chegar procurando abrigo pra continuar, digam, sem temores, depois de ajudar, que um pouco adiante, em qualquer lugar, tem calor da gente e amor a esperar que eu levei bastante pra sempre plantar.




Manuel Camilo dos Santos

Manuel Camilo dos Santos (1905-1987) nasceu em Guarabira-PB e morreu no Rio de Janeiro-RJ. Foi cantador, violeiro, poeta popular, tipógrafo, horoscopista, escritor e editor. Publicou folhetos como O romance de Abel com Margarida e Peleja com Pedro Simão. Publicou ainda os livros Autobiografia do poeta, O caboclo do Bode, Viagem a São Saruê (obra traduzida para o francês) e O sabido sem estudo.




Autobiografia do Poeta

(…) Deus a todos deu um dom
para com ele viver.
quem logo acertar com o seu
vive bem e tem prazer
e o que não acertar
só leva a vida a sofrer.

Uns têm o dom para artes
outros para a agricultura.
já outros para a ciência
porém outros é pra leitura.
enquanto uns vivem da música
outros exercem a pintura.

Alguns têm o dom profético
outros o dom da cirurgia
uns têm o dom de comércio
o meu dom é poesia.
e nele graças a Deus
vivo bem, tenho alegria.

Cada um para o que nasce
apoiado este dizer.
mas muitos deixam o seu dom
pensando enriquecer.
vão procurar longe
onde só acham o sofrer.




*****



Viagem a São Saruê

Doutor mestre pensamento
me disse um dia: – Você
Camilo vá visitar
o país São Saruê
pois é o lugar melhor
que neste mundo se vê.
Eu que desde pequenino
sempre ouvia falar
nesse tal São Saruê
destinei-me a viajar
com ordem do pensamento
fui conhecer o lugar.
Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
eu vi a aurora abismada.
Pela aragem matutina
eu avistei bem defronte
a irmã da linda aurora
que se banhava na fonte
já o sol vinha espargindo
no além do horizonte.
Surgiu o dia risonho
na primavera imponente,
as horas passavam lentas
o espaço incandescente
transformava a brisa mansa
em um mormaço dolente.




*****




O Sabido sem Estudo

Deus escreve em linhas tortas
Tão certo chega faz gosto
E fez tudo abaixo dele
Nada lhe será oposto
Um do outro desigual
Por isto o mundo é composto

Vejamos que diferença
Nos seres do Criador
A águia um pássaro tão grande
Tão pequeno um beija-flor
A ema tão corredeira
E o urubu tão voador

Vê-se a lua tão formosa
E o sol tão carrancudo
Vê-se um lajedo tão grande
E um seixinho tão miúdo
O muçu tão mole e liso
O jacaré tão cascudo

Vê-se um homem tão calado
Já outro tão divertido
Um mole, fraco e mofino
Outro valente e atrevido
Às vezes um rico tão tolo
E um pobre tão sabido

É o caso que me refiro
De quem pretendo contar
A vida d’um homem pobre
Que mesmo sem estudar
Ganhou o nome de sábio
E por fim veio a enricar

Esse homem nunca achou
Nada que o enrascasse
Problema por mais difícil
Nem cilada que o pegasse
Quenguista que o iludisse
Questão qu’ele não ganhasse

Era um tipo baixo e grosso
Musculoso e carrancudo
Não conhecia uma letra
Porém sabia de tudo
O povo o denominou
O Sabido Sem Estudo…

Um dia chegou-lhe um moço
Já em tempo de chorar
Dizendo que tinha dado
Cem contos para guardar
Num hotel e o hoteleiro
Não quis mais o entregar

O Sabido Sem Estudo
Disse: – isto é novidade?
Se quer me gratificar
Vamos lá hoje d etarde
Se ele entregar disse o moço:
– Dou ao senhor a metade

O Sabido Sem Estudo
Disse: – você vá na frente
Que depois eu vou atrás
Quando eu chegar se apresente
Faça que não me conhece
Aí peça novamente

O Sabido Sem Estudo
Logo assim que lá chegou
Falou com o hoteleiro
Este alegre o abraçou
O rapaz nesse momento
Também se apresentou

O Sabido Sem Estudo
Disse: – Eu quero me hospedar
Me diga se a casa é séria
Pois eu preciso guardar
Quinhentos contos de réis
Pra depois vir procurar

Respondeu o hoteleiro:
– Pois não, a casa é capaz
Agora mesmo eu já ia
Entregar a este rapaz
Cem contos que guardei dele
Há pouco dias atrás

Nisto o dono do hotel
Entrou e saiu ligeiro
Com um pacote, disse ao moço:
– Pronto amigo, seu dinheiro
Confira que está certo
Pois sou homem verdadeiro

Aí o Sabido disse:
– Ladrão se pega é assim
Você enganou o tolo
Mas foi lesado por mim
Vou metê-lo na polícia
Ladrão, safado, ruim

O hoteleiro caiu
Nos pés dele lhe rogando:
– Ó meu senhor não descubra
Disse ele: – só me dando
A metade do dinheiro
Que você ia roubando

O hoteleiro prevendo
A derrota em que caía
Além de ir pra cadeia
Perder toda freguesia
Teve que gratificar-lhe
Se não ele descobria

Foi ver os cinqüenta contos
No mesmo instante lhe deu
Outros cinqüenta do moço
Ele também recebeu
E disse: – nestas questões
Quem ganha sempre sou eu

E assim correu a fama
Do Sabido Sem Estudo
Quando ele possuía
Um cabedal bem graúdo
O rei logo indignou-se
Quando lhe contaram tudo

Disse o rei: – e esse homem
Sem nada ter estudado
Vive de vencer questão?
Isso é pra advogado
Vou botá-lo num enrasque
Depois o mato enforcado

O rei mandou o chamar
E disse: – eu quero saber
Se o senhor é sabido
Como ouço alguém dizer
Vou decidir sua sorte
Ou enricar ou morrer

Você agora vai ser
O médico do hospital
E dentro de quatro dias
Tem que curar afinal
Os doentes que lá estão
De qualquer que seja o mal

Se você nos quatro dias
Deixar-me tudo curado
De forma que fique mesmo
O prédio desocupado
Ganhará cinco mil contos
Se não será degolado

Está certo disse ele
E saiu dizendo assim:
– O rei com essa asneira
Pensa que vai dar-me fim
Pois eu vou mostrar a ele
Se isto é nada pra mim

E chegando no hospital
Disse à turma de enfermeiros:
– Vocês podem ir embora
Eu sou médico verdadeiro
De amanhã em diante aqui
Vocês não ganham dinheiro

Porque amanhã eu chego
Bem cedo aqui neste canto
Mato um destes doentes
E cozinho um tanto ou quanto
Com o caldo faço remédio
E curar os outros eu garanto

Foram embora os enfermeiros
E ele saiu calado
Os doentes cada um
Ficou dizendo cismado
– Qual será o que ele mata?
Será eu? Isto é danado!…

Outro dizia consigo:
– Será eu o caipora?
Mais tarde um disse: – E eu
Estou sentindo melhora
Outro levantou e disse:
– Estou melhor, vou embora

Um amarelo que estava
Batendo o papo e inchado
Lavantou-se e disse: – Eu
Estou até melhorado
Pois já estou me achando
Mais forte, gordo e corado

Já estou sentindo calor
De vez em quando um suor
Um doente disse: – Tu
Estás é muito peior
Disse o amarelo: – Não
Vou embora, estou melhor

E assim foram saindo
Cada qual para o seu lado
Quando chegava na porta
Dizia: – Vôte danado!
O diavo é quem fica aqui
Pra amanhã ser cozinhado

Um moço disse que ouviu
Um mudo e surdo dizer
Que um cego tinha visto
Um aleijado correr
Sozinho de madrugada
Já com medo de morrer

De fato um aleijado
Que tinha as pernas pegadas
Foi dormir, quando acordou
Não achou os camaradas
A casa estava deserta
E as camas desocupadas

Com medo pulou da cama
E as pernas desencolheu
Rasgou a “péia” no meio
E assombrado correu
Dizendo: – Fiquei dormindo
E nem acordaram eu!…

No outro dia bem cedo
O Sabido Sem estudo
Chegando no hospital
Achou-o deserto de tudo
Sorriu e disse consigo:
– Passei no rei um canudo

O Sabido Sem Estudo
Chegou no prazo marcado
Na corte e disse ao rei:
– Pronto já fiz seu mandado
Os doentes do hospital
Já saiu tudo curado

O rei foi pessoalmente
Percorrer o hospital
Não achando um só doente
Disse consigo afinal:
– Aquele ou é satanás
Ou um ente divinal

Deu-lhe o dinheiro e lhe disse:
– Retire-se do meu reinado
O Sabido Sem Estudo
Lhe disse: – Muito obrigado
Pra ganhar dinheiro assim
Tem às ordens um seu criado

 

Ariano Suassuna

Ariano Suassuna (1927- 2014) nasceu na cidade de Parahyba do Norte, hoje João Pessoa e foi um escritor brasileiro. Foi poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, professor e advogado. Em 1989, foi eleito para a cadeira n.º 32 da Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi eleito para a cadeira n.º 18 da Academia Pernambucana de Letra e em 2000, ocupou a cadeira n.º 35 da Academia Paraibana de Letras.Ariano Suassuna (1927- 2014) foi um escritor brasileiro. "O Auto da Compadecida", sua obra-prima, foi adaptada para a televisão e para o cinema. Sua obra reúne, além da capacidade imaginativa, seus conhecimentos sobre o folclore nordestino.


A infância

Sem lei nem Rei, me vi arremessado
bem menino a um Planalto pedregoso.
Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso,
vi o mundo rugir. Tigre maldoso.

O cantar do Sertão, Rifle apontado,
vinha malhar seu Corpo furioso.
Era o Canto demente, sufocado,
rugido nos Caminhos sem repouso.

E veio o Sonho: e foi despedaçado!
E veio o Sangue: o marco iluminado,
a luta extraviada e a minha grei!

Tudo apontava o Sol! Fiquei embaixo,
na Cadeia que estive e em que me acho,
a Sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!




*****



Nascimento - O exílio

Aqui, o Corvo azul da Suspeição
Apodrece nas Frutas violetas,
E a Febre escusa, a Rosa da infecção,
Canta aos Tigres de verde e malhas pretas.

Lá, no pelo de cobre do Alazão,
O Bilro de ouro fia a Lã vermelha.
Um Pio de metal é o Gavião
E suave é o focinho das Ovelhas.

Aqui, o Lodo mancha o Gato Pardo:
A Lua esverdeada sai do Mangue
E apodrece, no medo, o Desbarato.

Lá, é fogo e limalha a Estrela esparsa:
O Sol da morte luz no sol do Sangue,
Mas cresce a Solidão e sonha a Garça.




*****




A morte - O sol do terrível

Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao som do Sino.
Verei o Jaguapardo e a luz da Tarde,
Pedra do Sonho e cetro do Divino.

Ela virá - Mulher - aflando as asas,
com o mosto da Romã, o sono, a Casa,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chama e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.




*****




A mulher e o reino

Com tema do Barroco brasileiro

Ó! Romã do pomar, relva esmeralda
olhos de ouro e azul, minha Alazã!
Ária em forma de Sol, fruto de prata
meu chão, meu anel, Céu da manhã!

Ó meu sono, meu sangue, dom, coragem,
Água das pedras, rosa e belvedere!
Meu candeeiro aceso da Miragem,
Meu mito e meu poder - minha Mulher!

Diz-se que tudo passa e o Tempo duro
tudo esfarela: o Sangue há de morrer!
Mas quando a luz me diz que esse Ouro puro

se acaba por finar e corromper,
Meu sangue ferve contra a vão Razão
E pulsa seu amor na escuridão!




*****



Aqui morava um rei

Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.




*****




O mundo do sertão

Diante de mim, as malhas amarelas
do mundo, Onça castanha e destemida.
No campo rubro, a Asma azul da vida
à cruz do Azul, o Mal se desmantela.

Mas a Prata sem sol destas moedas
perturba a Cruz e as Rosas mal perdidas;
e a Marca negra esquerda inesquecida
corta a Prata das folhas e fivelas.

E enquanto o Fogo clama a Pedra rija,
que até o fim, serei desnorteado,
que até no Pardo o cego desespera,

o Cavalo castanho, na cornija,
tenha alçar-se, nas asas, ao Sagrado,
ladrando entre as Esfinges e a Pantera.

Envie poemas, minibio e foto para o e-mail lausiqueira@yahoo.com

Francc Neto

  Minha jornada como poeta começou na adolescência,  publicando poemas em revistas e jornais.  Ao longo dos anos, minha poesia foi reconheci...